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E sobre os governantes?

por Sarin, em 30.06.20

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Podemos abordar a política por muitas vertentes. Os regimentos, os processos, as expectativas... mas há um que é fundamental: os protagonistas.

Por aqui, tentámos nunca abordar a política pela vertente dos actores, os cidadãos com nome e vida pessoal que incorporam e executam os diferentes papéis políticos na nossa democracia. Quisemos que estes nossos escritos fossem uma reflexão e não uma reacção à gestão dos actores. Mas, mantendo os actores ausentes do discurso, não poderia deixar de aflorar os requisitos para se ser actor político.

A idade não é importante - quanto mais cedo a noção política, que não a doutrina partidária, entrar na vida de crianças e jovens, maior a probabilidade de se formarem cidadãos atentos e politicamente activos. Cidadãos atentos e politicamente activos exigem dos seus governantes, não se limitam a respingar pelos cantos. Exigem dos seus governantes, são melhores governantes.

Mas a experiência, o conhecimento, a dinâmica, a capacidade analítica, a idoneidade, a integridade, a capacidade argumentativa e negocial, ... as capacidades individuais, tanto quanto as competências, podem fazer a diferença na hora de escolher entre um e outro actor para um mesmo papel. Mesmo sabendo que, actualmente, apenas a nível local podemos escolher os actores, nada nos impede que sejamos exigentes também com os que não podemos escolher - mas sobre os quais poderemos, sempre, respingar, de preferência sustentada e consistentemente.

Por outro lado, temos a Lei das Incompatibilidades que, aprovando o regime do exercício de funções por titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos, define regras tendentes à transparência de teres, haveres e deveres. Basicamente, define o que podem ter e que cargos podem exercer os governantes antes, durante e depois de o serem. Por exemplo, prevê que um governante respeite um período de nojo antes de assumir funções em entidades que tenham estado sob a sua tutela ou com as quais tenha tido relações de interdependência. Um período que é relativo, podendo ser de 3 anos para umas funções e de 5 anos para outras, como recentemente aprovado para os lugares de governador do Banco de Portugal e direcção das entidades administrativas independentes. Também relativo é o que se entende por relações de interdependência. Alguém que tenha tutelado uma pasta terá conhecimento privilegiado sobre a mesma durante um período de tempo, daí o período de nojo - que apenas se aplica a empresas tuteladas ou com as quais houve interacção. Então e o conhecimento privilegiado sobre as suas concorrentes? Da mesma forma, podem existir empresas que foram e voltarão a ser dos governantes, mas cuja gestão e administração temporariamente são entregues a familiares e amigos. Proibir esta acumulação tem o objectivo claro de evitar favorecimentos, mas a consequência pode ser, em última análise, a impossibilidade de um governante local ser oriundo da área governada, sob pena de ter de adquirir os serviços em concelhos vizinhos e quiçá distantes.

Nestas coisas de ser transparente e honesto não basta escrevê-lo, há que sê-lo e parecê-lo.

Por isso a Lei das Incompatibilidades não ser suficiente. Há que perceber que servir a causa pública é um objectivo, não um trampolim. Que gerir a coisa pública é uma honra, não a sorte grande. E, para isto, é preciso ter actores mais bem formados, mais conscientes, mais transparentes. E mais bem remunerados, para que possam, sem perdas, abdicar de gerir o que é seu enquanto gerem o que é nosso. Bem remunerados, e bem escrutinados.

Porque nestas coisas de ser governante há que confiar, confirmando.

 

 

É este o último postal que escrevo no Rasurando. Foi um caminho muito desejado, muito estimulante e interessante, feito com autores que muito aprecio e cuja companhia não me canso de agradecer. No entanto, o projecto era exigente, muito exigente!, e a minha vontade muito superior à minha disponibilidade, esta tantas vezes aquém da necessária para acompanhar quem comigo embarcou.

Agradeço a quem aqui me acompanhou, autores e leitores, e desejo que um dia nos encontremos numa sociedade politicamente mais madura.

 

imagem: Kevin Spacey em House of Cards

Fonte: Lisboa ConVida

Já aqui se falou do Programa de Governo, aquele que será tão mais fiel ao programa eleitoral do partido que chefia o executivo quanto mais representação este tiver na Assembleia da República - partindo do habitual pressuposto que a indigitação para Primeiro-Ministro recai sobre o representante máximo de um partido sufragado.

A criação dos cargos de Ministro e de Secretário de Estado está directamente relacionada com o Programa de Governo, pois é este que orienta todas as acções do Governo em formação - que, por sua vez, dependem mas também obrigam à constituição de uma equipa que as assuma. A generalidade dos Ministros ficará responsável por um Ministério, embora tenha havido nos quatro primeiros Governos Provisórios e no primeiro Governo Constitucional a nomeação de ministros sem funções executivas, os chamados Ministros Sem Pasta. Parece absurdo, um alto membro do poder executivo sem aparente função executiva, mas não esqueçamos que o Conselho de Ministros é um órgão colegial onde apenas os Ministros têm direito de voto.

Um Ministério é um departamento superior da administração do Estado, necessariamente com uma vasta amplitude pois tutela toda a sua área ou áreas temáticas. As secretarias de estado, por sua vez, são departamentos com uma área mais específica de intervenção, independentes entre si mas coordenados dentro de um mesmo ministério. A importância que for atribuída a cada área temática num programa de governo determinará a quantidade, a organização e, até, a nomenclatura de ministérios e secretarias.

Há ministérios aparentemente incontornáveis - hoje ninguém pensaria em criar uma equipa executiva sem um ministro das finanças ou sem um ministro da defesa... no entanto, e de acordo com o programa de acção delineado, um Ministério das Finanças pode bem ser um Ministério das Finanças e da Administração Pública, como em 2004-2005, ou Ministério das Finanças e do Plano, como entre 1978 e 1985. Já tivemos Ministérios da Habitação, Ministérios da Indústria, Ministérios do Equipamento Social, até um Ministério da Qualidade de Vida tivemos entre 1981 e 1985. Há áreas que ora dão origem a ministérios por direito próprio, como por exemplo o actual Ministério do Mar (que já o foi em 3 outros governos, 1983-1985, 1991-1995, 2015-2019), ora são (pouco?) estrategicamente consideradas em conjunto com outras, como foram o Mar (ou, mais redutor, as Pescas) e a Agricultura em diversos Ministérios:

  • da Agricultura e Pescas (1975-1981, durou 10 governos);
  • da Agricultura, Comércio e Pescas (1981-1983, 1 governo);
  • da Agricultura, Pescas e Alimentação (1985-1991, 2 governos );
  • da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas (1995-2004, 3 governos);
  • da Agricultura, Pescas e Florestas (2004-2005, 1 governo);
  • novamente da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas (2005-2011, 2 governos);
  • da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (2011-2013, 1 governo);
  • da Agricultura e do Mar (2013-2015, 1 governo).

Enfim, poderia dar muitos exemplos, mas escolhi este porque o Mar é uma das nossas maiores riquezas (somos um dos países com maior Zona Económica Exclusiva do mundo) e nem isso lhe garante lugar de destaque entre as gentes que nos têm governado.

Faz sentido que quem vai governar o país se organize como entende mais adequado ao alcançar dos objectivos que se propõe. Mas ter-se-á de alterar a nomenclatura dos ministérios para o conseguir? Cada alteração promovida tem encargos para o Estado, i.e, para nós - desde o papel timbrado e os carimbos aos muitos sistemas informáticos, logótipos, organogramas, placas de identificação dos funcionários, nas secretárias, nos gabinetes, nos edifícios, nas viaturas... a que acrescem tempos de paragem ou alterações executadas em horário extraordinário, tudo isto multiplicado por tantos gabinetes e tantos departamentos regionais quantos os existentes na Administração Pública sob tal tutela. Não é uma conta leve e só por si deveria obstar tanta mudança.

Além das alterações entre legislaturas, de quando em vez há umas remodelações governamentais com alteração dos ministros e dos próprios ministérios - como em 2013 com o XIX Governo, em que o Ministério da Economia e do Emprego de um titular voltou a ser apenas Ministério da Economia com outro titular, tendo o Emprego ido parar às mãos do Ministro da Solidariedade e Segurança Social - que, mantendo-se no cargo, passou a ser Ministro da Solidariedade, Emprego e Segurança Social. Parece que, afinal, a organização do Estado não estará apenas relacionada com o Programa de Governo mas também com os interesses de quem ocupa o cargo ou com as forças partidárias representadas no executivo. Afinal, o Programa de Governo é aprovado para a legislatura completa, ao contrário do Orçamento de Estado (aqui também se fala dele) e das Grandes Opções do Plano, que são de aprovação anual - não me parece que tenha qualquer sentido alterar a estrutura cimeira da administração pública se as suas linhas de orientação se mantêm. Mas alteraram, no XIX Governo e também no IX, por exemplo, ambos formados por coligações pós-eleitoriais.

 

Enfim, esta contínua alteração, além dos custos e das dores de cabeça para o cidadão que nunca sabe bem a que Ministério se dirige, apenas revela que neste cantinho à beira-mar plantado os canteiros mudam conforme o hortelão. Em 46 anos de III República, e após 6 Governos Provisórios e 22 Governos Constitucionais, apenas 7 ministérios chegaram aos dias de hoje mantendo o nome criado em executivos anteriores*: Administração Interna (desde 1974), Justiça e Saúde (desde 1983), Defesa Nacional, Finanças e Negócios Estrangeiros (desde 2005) e Economia (2013). Não existe consenso sobre a organização do poder executivo central, e este parece-me ser um problema de regime: não havendo continuidade na estrutura, poder-se-à esperar continuidade nas políticas estruturais?

 

* Não considerei os Ministérios criados pelo anterior executivo uma vez que o Primeiro-Ministro se mantém. Ainda assim, aponto que o Ministério do Ambiente passou a ser Ministério do Ambiente e da Transição Energética no âmbito de remodelação ministerial ocorrida em 2018, na anterior legislatura.

O governo que elegemos

por Sarin, em 03.05.20

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O Poder Executivo em Portugal está centralizado no Governo. Mas a nível local é também exercido pelas Autarquias, especificamente o Executivo das Câmaras Municipais e o Executivo das Juntas de Freguesia.

É engraçada a forma como elegemos o pessoal que nos governa, quer a nível central quer a nível local.

Quero dizer, é engraçada a forma como elegemos os que elegemos!

O Governo central não é eleito. Votamos para a Assembleia da República, e normalmente - atenção a este normalmente! - o presidente do partido mais votado (ou da coligação) é convidado pelo Presidente da República a formar governo, depois de ouvidos os partidos com representação parlamentar - certamente para saber até que ponto tal personalidade terá a aceitação dos deputados e, portanto, nossa, já que os deputados são os nossos representantes eleitos.

O primeiro-ministro assim indigitado cria os ministérios que entende mais adequados ao seu programa de governo, escolhe quem quer para ministro e secretário de estado, e apresenta o resultado ao Presidente da República, lhes dá posse. Depois, vem a segunda parte, ser aprovado pela Assembleia da República. E é aqui que a coisa se pode complicar. Tecnicamente, a AR não aprova nem desaprova o Governo nem o seu programa de governo, mas pode rejeitá-los [e aceitá-los]. Ao votar a rejeição do Programa de Governo, a Assembleia da República demite formalmente o Governo recém-formado. Também o pode demitir após aprovação de uma Moção de Censura, ou da não aprovação de uma Moção de Confiança.

Recordam-se do normalmente ali de cima? Pois é. A indigitação do chefe do partido mais votado é a hipótese mais comum de dar início ao processo de constituição do Governo, mas o PR pode, pura e simplesmente, descobrir que tal cidadão não reúne consenso junto da AR, ou estar aquele envolvido em alguma situação que não dignifique ou que impeça qa ocupação de tal alto cargo, pelo que, mediante consulta ao Conselho de Estado e aos partidos, o PR pode perfeitamente decidir indigitar outro cidadão. Até pode optar por um que nada tenha a ver com os partidos representados. Claro que apenas o fará invocando razões muito fortes, afinal a decisão é do PR mas na verdade resulta da análise da posição dos partidos e da sociedade e não de uma arbitrariedade -o que não significa que não possa tentar forçar suavemente a aceitação de um nome.

E qual a nossa intervenção no processo de escolha da mais alta figura do executivo e da sua equipa?

Escolhemos directamente o cidadão que vai indigitar o Primeiro-Ministro e votamos nos partidos que colocarão na Assembleia da República os cidadãos que rejeitarão [ou aceitarão] o Programa de Governo, e que aprovarão (ou não) as Moções de Censura ou de Confiança. Pronto, é isto. Ficamos a saber quem nos governa depois das eleições para a Assembleia da República - é o que dá sermos uma democracia representativa.

No entanto...

O executivo camarário é votado directamente por nós, cidadãos! Sabemos exactamente qual o cidadão e qual a equipa que propõe para nos governar a coisa pública local. Embora possa não ser exactamente a equipa que vai funcionar, pois esta depende do número de vereadores eleitos pelo partido mais votado - e pelos outros. Aos vereadores eleitos o Presidente da Câmara atribui pelouros - pequenos ministérios à escala local. E haverá vereadores sem pelouro, que ficam assim a fazer parte do órgão colegial que é o executivo camarário mas não assumem qualquer função executiva directa. 

Para as freguesias, o sistema de formação do executivo volta a ser como o do governo central, com uma pequena diferença: a lei prevê que o Presidente da Junta seja o presidente da lista mais votada para a assembleia de freguesia. A equipa que o acompanhará, com um mínimo de dois vogais com funções de tesoureiro e secretário, é eleita pela Assembleia de Freguesia. Ou seja, voltamos a ter executivos escolhidos pelos nossos representantes, mas desta vez o chefe do executivo trabalha com a equipa que lhe escolherem.

São estas três formas distintas de tentar que as tendências existentes na sociedade estejam representadas nos órgãos executivos.

Mas serão a melhor forma de criar as equipas que nos deverão gerir a nós e à coisa pública?

 

Esta questão da escolha dos executivos pode ser abordada em vários holofotes. Como é matéria que me incomoda sobremaneira, não é de admirar que a aborde em todos os holofotes possíveis...

Petições Públicas

por Sarin, em 24.04.20

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A propósito das comemorações do 25 de Abril surgiram petições variadas na forma e no objectivo, uma delas dirigida, entre outros, ao Primeiro-Ministro. 

O que é, afinal, uma petição?

Consagrado na Constituição da República (CRP), o Direito de Petição é o instrumento mais poderoso a que o cidadão pode deitar mão para se dirigir voluntariamente aos órgãos do Estado e obter uma resposta.

Segundo o ponto 1 do artigo 52.º da CRP,  "Todos os cidadãos têm o direito de apresentar, individual ou colectivamente, aos órgãos de soberania, aos órgãos de governo próprio das regiões autónomas ou a quaisquer autoridades petições, representações, reclamações ou queixas para defesa dos seus direitos, da Constituição, das leis ou do interesse geral e, bem assim, o direito de serem informados, em prazo razoável, sobre o resultado da respectiva apreciação."

 

Uma petição pública, podendo ser colectiva, mais não é do que um abaixo-assinado com o objectivo de exercer pressão, sensibilizar políticos, criar uma onda de indignação, alterar ou criar propostas de lei. Portanto, tudo será admissível numa petição, que pode ser promovida em forma de papel ou através de plataforma electrónica criada exclusivamente para o efeito.

Uma petição não é, de todo, um exercício do direito de voto, não é um referendo, não vincula a matéria peticionada a uma decisão conforme o número de assinaturas.

Mas uma petição, podendo versar sobre qualquer tema e tendo qualquer entidade estatal como destinatário (com excepção dos tribunais), é um documento que obriga à leitura, análise e resposta por alguém dentro da entidade a que se destina (no caso que deste holofote, o Poder Executivo). Ou seja, uma petição tem o poder de formalizar as nossas preocupações junto do Governo Central, dos Governos Regionais, das Autarquias. Daí a sua importância no âmbito da cidadania activa, participativa.

 

Assim, seja o objectivo promover uma onda de indignação ou sensibilizar para determinada matéria, talvez seja importante atender a alguns cuidados na sua elaboração, sob pena de a mesma não chegar ao destinatário pretendido ou não passar a mensagem desejada.

Legisladas pela Lei 43/90, Exercício do Direito de Petição, as petições são simples de criar e não exigem conhecimentos específicos ou domínio do português; no entanto, para que possam ter força e ser efectivamente um instrumento de pressão, convém lembrar que devem ser endereçadas à entidade desejada - de nada vale dirigir-se à Assembleia da República se a matéria é competência do Governo.

Também convém ter cuidado na sua elaboração, pois a petição, assim chamada genericamente, pode ser uma 

  • petição, apresentação de um pedido ou de uma proposta para que se tome, adopte ou proponha determinadas medidas;
  • representação, destinada a manifestar opinião contrária ou a chamar a atenção para uma situação ou acto com vista à sua revisão ou à ponderação dos seus efeitos;
  • reclamação, a impugnação de um acto;
  • queixa, a denúncia de qualquer inconstitucionalidade ou ilegalidade, bem como do funcionamento anómalo de qualquer serviço, com vista à adopção de medidas contra os responsáveis.

Podendo colocar-se no mesmo documento petições, representações, reclamações e queixas, resta saber se terão mais efeito juntas ou separadas.

Outra questão importante é o prazo da petição: a tramitação de cada uma exige a avaliação dos fundamentos, que podem implicar a entrega de documentos técnicos, a audições com os peticionários ou ao recurso à intervenção de entidades externas, pelo que a urgência na resposta ou a proximidade da data peticionada pode acabar por transformar uma petição viável num projecto perdido.

Há ainda que recordar que uma petição pode ter indeferimento liminar se for apresentada a coberto do anonimato e se do seu exame não for possível a identificação da pessoa ou pessoas de quem provém. Recordando que basta um cidadão para efectuar uma petição, bastará que este esteja identificado - pois é a este que a resposta, obrigatória, será endereçada. Também será alvo de indeferimento liminar se carecer de qualquer fundamento ou se a pretensão for ilegal, visar a reapreciação de decisões cujo recurso não é admissível ou se pretender a reapreciação de casos já anteriormente apreciados sem que sejam invocados ou tenham ocorrido novos elementos de apreciação. Se estas exigências não forem cumpridas, a petição não passará de ruído, de perda de tempo para todos os envolvidos.

 

Devo dizer que fico muito feliz quando vejo petições a circular, os cidadãos a exercerem o seu direito de manifestação usando um dos mais poderosos instrumentos, depois do voto. Gosto de ver tanta actividade.

Mas dói-me ver o objectivo e o teor de algumas petições. O pessoal que as inicia certamente não tem nada para fazer e encontrou nas petições uma boa forma de se entreter. Ou então acha que vale a pena fazer os governantes perderem tempo. Não que alguns não tenham tempo para perder, e não que alguns outros não se percam entre trabalhos que nada têm a ver com o compromisso assumido com a Nação... Mas há quem realmente se prepare e dedique à causa pública que assumiu - ao seu modo, com as suas competências, com mais ou menos sucesso, mas há. Essa história de que "os políticos não fazem nada" não está sequer em avaliação como argumento.

E, se lhes queremos dar trabalho, não acho que o melhor caminho seja facultando-lhes desculpa para que o não façam.

 

Nota: este tema, sendo transversal aos órgãos públicos, entra neste holofote pela actualidade do tema - muito se falou em petições nestes dias.

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O Holofote 5 incide sobre o Poder Executivo. Os Governos, da República e Regionais, e as Autarquias.

Mas também incide nas relações que existem entre os cidadãos e quem nos governa, sendo fundamental analisarmos a forma como comunicamos. É esta que, antes de todas as outras matérias, iluminará o meu texto.

A pandemia que nos mantém confinados expôs várias fragilidades, uma delas o quão vulneráveis ficamos quando não nos podemos dirigir aos serviços: às repartições do Estado, às Escolas, quando até temos receio de ir ao centro de saúde. Expôs quão vulneráveis ficamos quando dependemos da comunicação social e das redes sociais para saber o que se passa lá fora no nosso país.

Num holofote anterior, falei da RTP e disse «Bem sei que tudo o que menciono acima se encontra disponível na Internet, mas a Internet é um canal distinto da radiotelevisão, e quer queiram quer não ainda há muitos info-excluídos - uns porque não têm possibilidade ou capacidade e outros porque não querem, "já não estão para isso" que as rotinas são uma opção de cada um.»

Neste momento as rotinas foram alteradas, incluindo as dos info-excluídos - que, com as rotinas alteradas e confinados, continuam a ser info-excluídos, excepção para um ou outro mais afoito respaldado num familiar. 

O Poder Executivo, o Governo mas também as autarquias, tem de comunicar aos cidadãos as suas decisões, as suas orientações, e é fundamental que a Direcção-Geral de Saúde faça chegar a mensagem a todos os cidadãos. Por muito que os sítios institucionais apresentem documentos e vídeos de divulgação, continuaremos a ter uma parte da população que não os consultará. Uns porque não querem, outros porque não podem. Resta-lhes a rádio e a televisão e os jornais - mas os jornais só vêm ter a casa num plano de assinatura e quem anda na rua pouco se chegará aos quiosques nesta altura.

Resta-lhes a rádio e a televisão para se informarem, para se entreterem, para se manterem ligados ao mundo - a ligação possível, pela imagem e pelo som. A alguns, a televisão servirá, até, para manter alguma rotina de estudo.

Pergunto-me como seria se não tivéssemos uma rádio e uma televisão de serviço público, canal preferencial  para o Poder Executivo comunicar com estas pessoas... um canal (na realidade, vários) sub-aproveitado e longe de cumprir cabalmente a sua missão de serviço público - mas disponível para, numa situação como a que vivemos, ter a programação reconvertida ao serviço do Ministério da Educação. Ou melhor, dos alunos. Um serviço possível.

Todos os dias tem saído legislação emanada do Governo. Porque não aproveitar a rede de canais existentes (televisão e rádio) para comunicar de forma clara os diplomas que são produzidos e aplicados? Não uma mera notícia, mas verdadeiros fóruns onde quem está em casa possa perceber as deliberações, as medidas e as suas aplicações?

Os info-excluídos estão dependentes dos serviços noticiosos dos canais nacionais, sejam rádiofónicos, televisivos ou papel-jornal. Grande parte deles, atrevo-me a adivinhar, não terá sequer canais alternativos, recorrendo à TDT, e não terá acesso a jornais diários a não ser em cafés e bibliotecas - que, nesta altura estão fechados. Muito a propósito, relembro a intervenção de Clara de Sousa no 5 para a Meia Noite, evidenciando as diferenças entre os serviços noticiosos de cada canal.  

Como seria se um Governo dependesse exclusivamente de privados para comunicar com esta parte da população? 

Também a propósito, foi agora divulgado que o Governo adquiriu espaço de publicidade em órgãos de comunicação social para, exactamente, poder divulgar as suas orientações ao maior número de cidadãos. Não comentarei o facto, fica apenas a indicação de que a necessidade da comunicação directa do Governo aos cidadãos existe e foi identificada.

 

Claro que, quando escrevo "o Governo comunicar", refiro-me a uma comunicação unilateral. Mas nós, cidadãos, também temos de comunicar com o poder executivo. A segurança social, as finanças, a saúde, a câmara municipal... e se, além de tudo isto, quisermos comunicar directamente com o Primeiro-Ministro? Sim, os info-excluídos não terão tal possibilidade. Então, talvez que o computador e a Internet sejam bens tão essenciais para a democracia como a água, a energia e o saneamento básico são para o desenvolvimento das sociedades.

 

na imagem, ENIAC, o primeiro computador do mundo (criado em 1946)

 

Nota 1. Há a possibilidade de que algumas das medidas adoptadas com este confinamento se mantenham depois de abertas as portas. E talvez este confinamento nos faça repensar a forma como comunicamos com o Estado, personificado aqui pelos agentes do Poder Executivo.

 

Nota 2. Como seria tal comunicação se houvesse canais regionais de televisão e se as rádios regionais fossem menos sub-aproveitadas pelos poderes executivos nacionais e locais na hora de recolherem informação e divulgarem medidas? Um dia sou capaz de voltar ao tema.

Por agora, fiquem bem e obrigada por terem voltado connosco.

 

Um jovem presidente

por Sarin, em 19.03.19

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Ser Presidente da República, já o havia dito antes, não me parece ser tarefa fácil.

Para ser elegível como Presidente, o indivíduo apenas tem de cumprir dois ou três requisitos: ser cidadão português, estar registado como eleitor e ter mais de 35 anos.

Mas os requisitos são apenas um filtro inicial, largo e tosco. Tosco, porque arbitrário: 35 porquê?

Se em 1976 se esperava que um indivíduo de 35 anos tivesse família e casa própria, vida estável e experiência de vida, quero dizer, se esperava tal daqueles que haviam sobrevivido à Guerra Colonial graças à boa sorte que a mais não se podia almejar em tal guerra, em 2019 vários estudos e quase todas as evidências apontam exactamente para um adiamento de tais expectativas, com os jovens a serem jovens e dependentes até bem perto dos 30. E talvez depois.

Concordo que ter um puto a chefiar o país não parece coisa de gente séria - mas depois olha-se para putos como Malala Yousafzai e Greta Thunberg e percebe-se que talvez não seja mesmo nada necessário nascer duas vezes para se ser seja o que for, à primeira acertamos.

Por isso, entendo que a questão da idade para os presidenciáveis é um requisito anacrónico, limitante e desajustado da actual realidade - se é que a justificação para os 35 tem algo a ver com o acima aventado...

 

O que nada tem a ver com o acima aventado é a falta de arejamento atribuído da função. Não, não critico o desempenho deste ou dos anteriores, mas a forma como tantos se lhe dirigem. O actual PR não tem uma mulher com quem coabite, pelo menos oficialmente, mas os anteriores tinham. E a comunicação social chamou-lhes "Primeira Dama", esdruxulamente importando dos EUA uma figura que por lá está consagrada mas que por cá não existe - e, desculpem a insistência, é perfeitamente discriminatória e contrária à Constituição da República, que a ela não se refere nem remotamente e cujo companheiro garante defender. "Primeira Dama" por quê? Primazia de um cidadão sobre outros? Nepotismo, é o que é... até porque, não estando a figura prevista na lei, a atribuição de cargos vários à companheira do PR por ser companheira do PR apenas indicia nepotismo, uma tradição enraizada na nossa sociedade mas que nem sempre é vista com olhos nus. Afinal, a muitos luz ainda o cheirinho dos antigamentes cheios de faustos e deferências. E digo isto sem desprimor para algumas das cônjuges que tão bem desempenharam algumas de tais funções para as quais foram convidadas mercê das circunstâncias. E se o próximo PR for uma mulher e tiver um companheiro, chamar-lhe-ão "Primeiro Cavalheiro"? Mesmo que seja de uma boçalidade atroz? Ou, se for uma mulher a ser eleita PR e essa mulher tiver uma companheira, passaremos a ouvir falar em "Segunda Dama"?

Enfim, adiante. E deixemos de ser tontos e de tontamente inventar figuras ao Estado.

 

 

Estado aconselhado

por Sarin, em 15.03.19

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Sala do Conselho de Estado, Palácio Nacional de Belém

(site oficial)

 

Gosto muito de ter um Presidente da República.

Gosto especialmente de ter um Chefe de Estado escolhido pelos cidadãos em função dos méritos que  a maioria lhe reconhece. E gosto também de a chefia de Estado não ser uma actividade vitalícia ou levada a cabo até que o seu titular resolva arrumar as botas ou cair da cadeira.

Penso que esta nossa semi-presidencialista República poderia redefinir as funções e competências da sua presidência, mas sobre isso falarei noutros postais. Neste, interessa-me abordar o peso que terá ser Chefe de Estado.

Chefiar o Estado parece ser viajar, aparecer, dar beijinhos e fazer discursos - pelo menos, é esta a face visível e à qual, uns mais que outros, dão especial relevo. Suponho que a poucos interessaria ver fotografias e ler notícias ou opinião sobre as longas horas em que o chefe de estado tem de ler pilhas/gigas de informação sobre os países e o protocolo dos países que visita ou de cujos representantes recebe visitas. E isto só para falar da parte mais-ou-menos divertida...

... porque há a outra, aquela em que o Chefe de Estado chefia dentro das suas competências e tem de ler pilhas/gigas de informação sobre os diplomas que promulga, sobre as questões internacionais e nacionais que colocam em causa soberania e democracia, e mais umas quantas questões de menor relevância, como aquela prerrogativa de amnistiar réus ou conceder indultos a criminosos em épocas pouco aleatórias mas nada democráticas. A sério, é uma tradição que dimana da Constituição... mas, além de cheirar a feudalismo, não configurará uma verdadeira ingerência de poderes, um não-juiz ter o poder de julgar merecedor de liberdade aqueles que as leis e os tribunais consideraram culpados?

Seja como for, para estas e para outras questões, o Chefe de Estado, posição nominal com votação directa na nossa democracia, tem de fazer um certo trabalho de casa e tem de tomar decisões.

Tem uma equipa sob a sua orientação para recolher e preparar e organizar a informação, claro, mas as decisões passam por ele, funcionário e representante do povo. Tarefa para um homem só... que não é fácil, por muito fácil que seja dizer o Presidente da República não faz nada por poucos poderes executivos ter.

Mas já no tempo dos Reis, e o nosso tempo dos reis vem de longa data!, o Rei (algumas vezes a Rainha) detinha o poder e as chaves do Reino mas tinha um grupo de gentes que o rodeava e que, mais do que mesuras, lhe dava opinião e conselhos, e mesmo este antigo grupo era formado por pessoas de confiança do Rei mas também por representantes de várias formas de organização da sociedade. Porque um Rei podia até ser absolutista e autoritário, mas ninguém consegue chefiar sozinho - nem então nem agora.

Talvez por isso a República tenha mantido a figura do Conselho de Estado que já vinha da Monarquia, embora redefinisse a sua constituição e as suas incumbências.

O Conselho de Estado, órgão consultivo do Presidente da República, é uma figura algo sombria e da qual mal se ouve falar mas, sendo embora consultivo e não vinculativo, é o garante de que o Chefe de Estado não pondera nem delibera sozinho ou, pelo menos, tem a quem recorrer e solicitar parecer sobre dissoluções da Assembleia, demissões do Governo, declarações de guerra e demais questões sob a sua alçada. É também um mecanismo de travão a impulsos mais autoritários, apesar de o Presidente não estar obrigado aos seus pareceres.

 

Os membros do Conselho de Estado estão bem definidos na Constituição, portanto pouco haverá a acrescentar. Excepto talvez naquela parte dos cidadãos escolhidos pelo PR e pela Assembleia... 

Desculpem-me, mas fico muito incomodada quando leio o artigo 14 da Lei 38/84, lei que define o estatuto do Conselheiro de Estado e cujo artigo mencionado torna intocáveis os seus membros, pelo menos enquanto o forem: "Nenhum membro do Conselho de Estado pode ser detido ou preso sem autorização do Conselho, salvo por crime punível com pena maior e em flagrante delito" e, como se não bastasse, "Movido procedimento criminal contra algum membro do Conselho de Estado e indiciado este definitivamente por despacho de pronúncia ou equivalente, salvo no caso de crime punível com pena maior, o Conselho decidirá se aquele deve ou não ser suspenso para efeito de seguimento do processo"...

Portanto, os Deputados nomeiam 5 conselheiros ao gosto dos partidos e o Presidente da República nomeia outros 5, e é o próprio Conselho que decide se podem ou não ser julgados enquanto em funções; e, mesmo que julgados e condenados, é o mesmo Conselho que decide se continuam ou não conselheiros... haverá a suspensão da prescrição dos crimes pelo meio, é certo, mas ocorre também o adiamento da obrigatoriedade de ser presente ao juiz - e nesse adiamento muita coisa pode acontecer.

A suspensão automática de qualquer cargo político aquando de julgamento por crimes públicos deveria ser um princípio e não uma opção, e menos ainda quando tais cargos resultam de confiança  e não de sufrágio ou inerência de funções. Como é o caso destes 10 Conselheiros. Porque a suspeição lançada sobre o indivíduo é extensível aos que nele confiaram, quiçá confiam. Por mim, gostava de ter uma Democracia em que o indivíduo é inocente até julgado culpado mas também em que quem nos governa e quem aconselha quem nos governa tem o sentido de estado suficiente para se afastar quando a mácula o atinge, coibindo-se de manchar o cargo que ocupa. E não aceito argumentos sobre a confiabilidade e a dignidade ou a presunção de inocência do indivíduo - equivaleria a aceitar que a fidelidade e o discernimento de um outro indivíduo ou grupo de indivíduos com interesses comuns se podem sobrepor a todos os mecanismos da Justiça, desde a denúncia até à pronúncia. Como sobrepõem. E que eu não aceito - embora de nada me valha a reclamação, mas cá fica.

Quem não se fica sou eu, e volto ao estatuto do Conselheiro de Estado que, no seu artigo 17º dedicado aos direitos e regalias, permite colocar uma arma nas mãos de todos os Conselheiros. "Uso, porte e manifesto gratuito de arma de defesa, independentemente de licença ou participação" e presumo (friso o presumo porque nada encontrei sobre a matéria) que, também, sem necessidade de atestado médico ou certificado de aprovação para o uso e porte de armas de fogo. Sim, porque embora o art.º 17 fale em "arma de defesa" e esta não tenha que ser especificamente de fogo, não estou a ver os Senhores Conselheiros a andarem de bastão ou faca de ponta-e-mola no bolso... e longe vão os tempos em que era moda usar bengala com estilete.

 

Enfim, gosto de ter Conselheiros a ajudar o meu Presidente na minha República. Só não gosto muito das meias tintas que usam enquanto vicejam as cores da nossa bandeira. Aconselho ao Estado revisão à figura do conselheiro de Estado, assim bem aconchegado para seu conforto e meu (nosso?) desconforto.

Por amor ao Estado

por Sarin, em 14.02.19

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Todos os que exercem funções públicas fazem-no por devoção e amor ao Estado, todos o sabemos.

Nada tem a ver com jogos de poder, regalias ou outras coisas assim mundanas. Não. É mesmo por amor ao Estado.

E sabe-se que quem nos governa tem de ter uma coisa muito específica, que é o Sentido de Estado.

Pois bem, fui procurar a definição de Sentido de Estado, e... nada! Nem na Constituição, nem sequer na Wikipédia! Encontrei vários textos que falavam desse tal Sentido, mas definição nenhuma, zero, nadinha.

Fiquei com a sensação de que o Sentido de Estado é o que cada um queira, logo, um sentido com várias direcções... e isso explica tudo, até o inexplicável e o inexpugnável das nossas gestões da coisa pública. Ele há coisas...

 

Enfim, não resisto a partilhar a desdefinição que Juan José Añó Óliver publicou no El País no longínquo ano de 2014. Volto amanhã ao tema. Hoje sinto-me perdida com tantos sentidos. Ou isso ou estou inebriada com tanto amor...

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As contas do Estado são discutidas junto com as tais Grandes Opções do Plano.

Ora, contas que são contas devem ser vigiadas - e se de um lado temos o Estado, representado pelo Governo, a propor-se gastar e receber, do outro temos o Estado, representado pela Assembleia da República, a vigiar como vai o Governo gastando e recebendo, e temos o Estado, representado pelo Tribunal de Contas, a verificar como foi gasto e recebido.

Estado, estado, estado. Então e os cidadãos? Onde estamos nesta processo de vigiar o Estado? Não apenas o dinheiro gasto mas também o tempo e a atitude daqueles a quem pagamos para gerirem a coisa pública e regularem a vida de todos nós?

Uma Democracia, pelo menos o modelo em que a nossa assenta, depende formalmente de 3 poderes: o Legislativo, o Executivo e o Judicial. Bem definidos e separados entre si. E depois surgiu um Quarto Poder, ou contrapoder como lhe chamou Thomas Carlyle, representado inicialmente pelos Órgãos de Informação e hoje por, aparentemente, qualquer indivíduo que receba gostos em barda. Cinjamo-nos aos órgãos de informação e comunicação social, pois a estes cabe o fundamental papel de escrutínio dos outros três, tão fundamental que por ele surgiu a muito famosa Liberdade de Imprensa consagrada na nossa Constituição.

Que, entre outras coisas, diz exactamente:

"O Estado assegura a liberdade e a independência dos órgãos de comunicação social perante o poder político e o poder económico (...)"

"O Estado assegura a existência e o funcionamento de um serviço público de rádio e de televisão."

"A estrutura e o funcionamento dos meios de comunicação social do sector público devem salvaguardar a sua independência perante o Governo, a Administração e os demais poderes públicos, bem como assegurar a possibilidade de expressão e confronto das diversas correntes de opinião."

 

Centrada que estou no Estado, deixo a liberdade de imprensa e os privados para outra viagem; hoje quero mesmo falar do direito de sermos informados pelo Estado e do papel dos canais públicos no cumprimento desse direito.

Temos canais públicos de radiotelevisão e radiodifusão. É um facto. Mas não temos nenhum jornal generalista de distribuição nacional que seja do Estado - como se a palavra escrita não fosse importante... bom, façamos por ignorar esta diferenciação de tratamento dos canais usados para disseminar a mensagem. Não se justifica tal discriminação, mas adiante. Na verdade, o Estado tem um jornal, o Diário da República, que até está acessível íntegra e gratuitamente na internet - mas cujas notícias saem assinadas por legisladores e executivos e não por jornalistas. São notícias porque são novidade, mas são também letra de lei e por isso este jornal não está abrangido pela Lei da Imprensa. 

É expectável que, sem prejuízo da liberdade de imprensa dos privados, os canais do Estado se dediquem a cumprir os desígnios com que foram criados, conforme o art.º 53º da Lei da Televisão e Audiovisuais:

"O serviço de programas generalista de âmbito nacional dirigido ao grande público deve, atendendo às realidades territoriais e aos diferentes grupos constitutivos da sociedade portuguesa, conceder especial relevo: 
a) À informação, designadamente através da difusão de debates, entrevistas, reportagens e documentários; 
b) Ao entretenimento de qualidade e de expressão originária portuguesa; 
c) À transmissão de programas de carácter cultural; 
d) À sensibilização dos telespectadores para os seus direitos e deveres enquanto cidadãos."

Não me dedicarei a discutir os méritos da programação - a abertura de novos canais do estado veio colmatar algumas das muitas falhas que existiam, mas ainda assim há muito terreno para recuperar, especificamente no que respeita à cultura e à sensibilização para os direitos e deveres dos cidadãos. Esta sensibilização, principalmente esta, tem sido esquecida, relegada para segmentos de opinião em que a opinião passa por informação. E urge corrigir esta falta. Mas disse que não iria falar sobre a programação destes canais e por isso não falarei. 

Os canais públicos têm um problema de financiamento: se por um lado têm um dever consagrado na Constituição, logo não podem criar grelhas adequadas à competição pelas audiências, por outro não conseguem contratos publicitários da mesma dimensão dos privados porque têm audiências bem menos significativas. Falha nossa, dos cidadãos, que preferimos alimentar privados? Sim, falha nossa mas não apenas nossa. E talvez nem nossa seja a maior quota...

Não sendo competitivos, os canais estatais estão dependentes da dotação no Orçamento de Estado.

Suponho que terá sido por isso que criaram aquela taxinha muito incómoda e absolutamente incompreensível que pagamos na factura da electricidade: a taxa de audiovisual. Confesso que concordo com a taxa, seria uma forma de retirar da alçada do Governo alguma da dependência dos canais públicos. No entanto, uma taxa de audiovisual faz-me sentido na aquisição de equipamentos que possam transmitir audiovisualmente, entre televisões, rádios, sistemas de som, computadores, telemóveis, antenas, serviços de streaming, pacotes de canais e sei lá que mais. Uma taxa paga na aquisição do equipamento, proporcional à afectação do equipamento (um televisor não teria a mesma taxa que um telemóvel, nem lá perto!). Na electricidade não faz qualquer sentido! Claro que, perante esta taxa, a dotação orçamental teria que ser revista, mas o objectivo seria sempre a maior autonomia possível face ao OE, que é para isso que vejo as taxas e as prefiro aos impostos.

Além da questão financeira, há outra dependência importante dos canais do estado: a gestão.

A RTP tem uma Assembleia Geral e quatro Conselhos: o Independente, o de Opinião, o Fiscal e o de Administração. É este que tem o poder executivo, é este que na verdade manda na RTP, mas é escolhido pelo primeiro, que define também as linhas orientadoras do projecto de administração. O de Opinião, na prática, só tem servido para dar opinião sem carácter vinculativo e para indigitar dois membros para o Conselho Geral Independente, e o Fiscal faz o que fazem os outros CF - fiscaliza contas. O Conselho Geral Independente é formado por dois membros indigitados pelo  Conselho de Opinião, como disse, e por dois membros indicados pelo Governo, e depois entre eles os quatro cooptam, que é como quem diz, escolhem à sua imagem e semelhança, dois outros membros.

Todos nos lembraremos das várias polémicas sobre ingerências de ministros vários na RTP. E fizeram-no porque o tal órgão público que o Estado deve manter e cuja independência deve garantir está na dependência do Governo. Sim, é isso: o órgão de soberania que ninguém elege é o responsável pela tutela do serviço que nos deveria permitir a nós, cidadãos, aceder às informações relevantes sobre o que se vai passando no nosso país e com o nosso estado.

Sendo assim importante, não deveriam os órgãos públicos ser tutelados pela Presidência da República? Se:

a) o serviço público é concessionado e é o Governo que escolhe o concessionário,

b) a verba com que terão de definir o seu orçamento é atribuída pelo Governo,

c) o Governo nomeia dois dos quatro membros que depois escolherão os restantes dois membros do Conselho Independente, do qual sai a aprovação para o Conselho de Administração,

d) a Entidade que regula todos os serviços de comunicação social em Portugal, a ERC (Entidade Reguladora para a Comunicação Social) é votada pela Assembleia da República...

... onde é que se consegue a tal independência de que fala a Constituição?

Não é que eu confie pouco nos políticos, não - é mesmo porque não confio nada. E a história tem-me mostrado que não é por mau feitio.

Concordo que o Estado assegure a existência de canais informativos, culturais, desportivos, lúdicos. Não o fazer significa deixar-nos inteiramente à mercê de interesses que, face ao quadro actual, são cada vez mais inescrutáveis... Não acho é que o modelo seguido seja o mais adequado à prossecução dos objectivos que lhe são atribuídos, nomeadamente o tal escrutínio a que nós, cidadãos, deveríamos ter direito independente de interesses políticos e financeiros.

 

Há um outro canal público de que geralmente nem nos lembramos: o ARtv, o canal do Parlamento. Um canal aberto onde podemos acompanhar o que se vai passando na Assembleia da República. Gosto muito deste canal. Permite-nos ver, por vezes ao vivo, o que se está a passar na casa da nossa Democracia. Mas vejo-o sub-aproveitado. Por exemplo, a programação para hoje começa às 11h e o último bloco vai para o ar às 23h. Audiências e Audições de dia 6, e está o dia feito.

Penso que seria um verdadeiro serviço de transparência e informação ao cidadão se contemplasse um serviço noticioso para divulgação de:

a) Sumário dos trabalhos do dia anterior,  entre comissões especiais e comissão de especialidade, com indicação das respectivas presenças;

b) Ordem de trabalhos para o dia;

c) Iniciativas legislativas em curso;

d) Legislação publicada em DRE no dia anterior.

Bem sei que tudo o que menciono acima se encontra disponível na internet, mas a internet é um canal distinto da radiotelevisão, e quer queiram quer não ainda há muitos info-excluídos - uns porque não têm possibilidade ou capacidade e outros porque não querem, "já não estão para isso" que as rotinas são uma opção de cada um.

O Estado não pode obrigar um cidadão a optar por um canal específico.

Mas o cidadão tem o direito de ser informado. Está lá, na Constituição.

 

 

O Orçamento-(eleitora)lista

por Sarin, em 09.02.19

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O Orçamento de Estado, diz a Não me dêem ouvidos e diz o Eduardo Louro, orienta, limita e obriga o Governo e as suas políticas, pois que tem de ser elaborado por este e aprovado na Assembleia.

Claro que não basta a um Orçamento ter as muitas e variadas rubricas em bonitas folhas de Excel; tem que ter algumas instruções sobre como se pretendem usar (afectar ou dotar, dizem eles) os dinheiros. Sim, dizer "que se afecta um determinado montante, ou que se dota uma determinada entidade, com um determinado valor" só por si é muito vago, apesar de todos os determinados que a frase tem; por isso, para que as ideias fiquem claras e depois não andem em guerras "ah, mas eu achava que..." é que o Governo tem de apresentar os Planos, conforme previsto na nossa Constituição. Planos que mais não são do que a resposta às velhas perguntas Como, Onde, Quando, Quem - o Quanto fica por conta do OE.

Se notarem que mal falo no Conselho Económico e Social é porque este CES está previsto ser consultado em quase tudo mas apenas ouvimos falar desta gente aquando de matéria laboral, pois que no que aos outros planos respeita aparentam entrar mudos e sair calados... e é pena.

 

Voltando aos Planos, estes são abrangentes e orientam toda a política económica do Governo em cada ano, e por isso têm um nome assim para o grandioso: Grandes Opções do Plano. Os deputados exigem saber, e muito bem!, todos os Porquês destas GOP, e depois de explicadas na Assembleia até podem propor alterações, mas nunca se podem chegar à frente com uma ou outra opçãozita... Enfim, o tal Plano é do Governo e, como disse uns postais antes, os nossos governantes nunca se descosem muito nas campanhas, até porque nem sabemos de quem se rodeará o Primeiro-Ministro; portanto, e em rigor, nunca ninguém pode acusar os governantes de não cumprirem o planeado - daí ser sempre o qualquer-PM a levar rodas de mentiroso, e aqui me penitencio desde já se nos próximos anos nascer algum que não.

Assim, o Orçamento do Estado mais não é do que uma imensa lista de despesas, receitas e investimentos apurados (tentem lá fazer isto num processador de texto!), determinados em função das GOP, as quais obedecem ao tal Plano - que se confunde quase sempre com o Programa de Governo. Isto porque em Portugal não há tradição de continuidade entre governos de cores distintas, pois era suposto o Plano ser, efectivamente, um Plano de Desenvolvimento do País, no qual o CES teria um papel fundamental como garante da continuidade; mas aquilo que se vai conseguindo nesta matéria resulta, afinal, dos tais pactos de regime.

 

Ora se o OE não passa afinal de uma lista de entradas e saídas esperadas de dinheiro, claro é que em ano de eleições a lista se torna eleitoralista - afinal, quem governa tem de tentar ser reeleito para poder continuar o seu Plano.

 

 



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Não falamos da actualidade, do acontecimento. Nem opinamos sobre uma notícia.

Falamos de política num estado mais puro. Sem os seus actores principais, os políticos - o que torna o ar mais respirável. E os postais sempre actuais; por isso, com as discussões em aberto.

A discussão continua também nos postais anteriores, onde comentamos sem constrangimentos de tempo ou de ideias.





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