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O exercício da presidência

por Eduardo Louro, em 16.03.19

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O nosso regime semipresidencialista confere à Presidência da República um estatuto político que se poderá dizer privilegiado. A sua eleição por sufrágio directo garante-lhe à partida uma certa almofada de conforto eleitoral. É que terá sempre de ser eleito por mais de metade dos votos dos portugueses, o que, mesmo nas disputas mais apertadas, lhe garante uma apreciável base de apoio. Que é geralmente alargada na própria noite eleitoral: não é por acaso que, invariavelmente, a primeira declaração do Presidente eleito é afirmar-se “Presidente de todos os portugueses”!

Com um primeiro mandato invariavelmente gerido em função do objectivo de alargar a sua base eleitoral, o novo Presidente parte sempre com uma forte propensão para agradar aos eleitores. Como, por outro lado, está a salvo da impopularidade da governação – o seu reduzido espaço de intervenção executiva não o obriga a expor-se ao custo das decisões – o Presidente tem tudo para funcionar como a válvula de escape do regime, como um ombro amigo às ordens da frustração dos cidadãos.

A conjugação destas duas condições resulta geralmente numa espécie de mola que facilmente o empurra para os picos da popularidade. Uns fazem-no melhor que outros, como acontece com tudo. E ninguém até hoje o fez melhor que o Presidente em exercício.

Mas, deve também dizer-se, nunca antes alguém preparou tão bem este exercício de sucesso. Nem porventura houve quem tenha encontrado melhor oportunidade e melhores condições para isso. Com o caminho bem preparado, com um grande resultado eleitoral, e entrando em funções num período de um certo pessimismo e demasiado crispado – muito por culpa de um final de mandato verdadeiramente desastrado do seu antecessor, mas também pela circunstância de, pela primeira vez na democracia portuguesa, um governo não ter saído do partido mais votado, mas de uma maioria parlamentar que nunca tinha funcionado como tal – o Presidente acabaria por encontrar o tempo e as circunstâncias ideais para um modelo de presidência para que estava especialmente vocacionado.

Modelo que não é no entanto inesgotável. Bem pelo contrário, com a alteração das circunstâncias, e com outro tempo, a mais de um ano do fim do mandato, o modelo começa a dar sinais de saturação - a fronteira entre popularidade e populismo é apenas um deles – e a exigir significativos ajustamentos, a desafiar a capacidade de reinvenção do actor que poderá ter ficado refém da personagem.

 

As presidências na I e na II República

por Eduardo Louro, em 12.03.19

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Desde que instituída a República, em 1910, a presidência teve sempre grande relevância no país político. Foi determinante nos primeiros anos da República, no meio de uma imensa instabilidade, com oito presidentes em menos de 16 anos, entre os quais grande vultos da cultura e da política, no mais presidencialista dos regimes das três Repúblicas da nossa História. Foi esvaziada ao longo da ditadura. Salazar, também ele presidente da República, interinamente, por duas vezes - ambas durante 4 meses, em 1935, no meio do consulado de Óscar Carmona, e em 1951, depois da sua morte -, não abria mão nem do poder nem do papel decorativo que reservava à presidência da República. Mas nem por isso as eleições presidenciais deixaram de ser um ponto alto de mobilização da resistência à ditadura.

Numa candidatura à presidência da República a convergência política é sempre mais provável.  É mais fácil congregar vontades e reunir motivações à volta de uma pessoa, num órgão unipessoal. Por isso praticamente todas as eleições presidenciais acabaram em forte mobilização popular contra a ditadura, obrigando-a a mostrar tudo o que pretendia esconder com actos eleitorais forjados. 

Até 1942, nos primeiros 15 anos de construção do regime, a ditadura não revelou grandes dificuldades na manipulação dos acontecimentos. O General Óscar Carmona, que Salazar escolhera para a função, foi concorrendo sozinho, sempre como candidato único, como o regime desejava. Mas já em 1949 surgiu a candidatura do General Norton de Matos, a mobilizar a contestação e a resistência à ditadura. Não teve naturalmente condições para ir a votos, e Carmona foi reeleito para o seu último mandato, que não concluiria, por morte, dois anos depois, provocando nova eleição presidencial. Desta vez sugiram duas candidaturas na oposição, entre elas a do Professor Ruy Luís Gomes, que voltou a congregar grande apoio e a dinamizar movimentos de massas. Que a ditadura abafou de imediato, com o Conselho de Estado a declarar a candidatura ilegal, acabando eleito o candidato de Salazar, Craveiro Lopes.

Estaria reservada para a seguintes, em 1958, uma das páginas mais marcantes História da luta contra a ditadura, com a campanha do General Humberto Delgado a agitar toda a sociedade portuguesa. Perguntado sobre Salazar, deixou uma das mais emblemáticas frases da História de Portugal: "Obviamente, demito-o"!   

Sabe-se que a ditadura de Salazar teve de recorrer à maior fraude eleitoral da nossa História, acabando a proclamar a vitória de Américo Tomaz com 75% dos votos. O sismo foi tal que Salazar acabou ali com o embuste do sufrágio directo para a eleição presidencial. A partir daí, Américo Tomaz foi sucessivamente eleito por um colégio eleitoral, até ser destituído em 25 de Abril de 1974.

O caminho para Belém

por Eduardo Louro, em 09.03.19

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Sediada no Palácio de Belém, o nosso palácio cor de rosa, a presidência da República é um órgão unipessoal, a que se acede através de eleição directa e universal. 

Qualquer cidadão português com mais de 35 anos, no pleno gozo dos seus direitos civis e políticos, se pode candidatar a essa eleição. Precisa no entanto que a candidatura seja proposta por um mínimo de 7.500 cidadãos eleitores, isto é, terá que apresentar um mínimo de 7.500 assinaturas (e um máximo de 15 mil).

Estas são as condições de partida, iguais para todos, sem qualquer descriminação, mesmo que nem todos disponham das mesas condições, desde logo para garantir as assinaturas necessárias. O que para uns não passa de um simples formalismo é, para outros, uma enorme dor de cabeça. E muitas vezes logo um obstáculo intransponível!

A partir daqui, formalizada a candidatura, começam as verdadeiras dificuldades. Começa logo pelas barreiras mediáticas. Quem não tiver livre trânsito mediático fica á porta. Não sai dali. Depois, por ser preciso dinheiro. Muito dinheiro, que a campanha não é barata. E a subvenção pública é curta, não atinge os 3,5 milhões de euros, distribuídos proporcionalmente aos resultados obtidos, e só chega a quem tiver obtido mais de 5% dos votos.

Deixemo-nos portanto de romantismos e ilusões. Qualquer um pode sonhar ser presidente da República, mas para isso tem que de ter pouco de tino. Em Rãs, ou noutra qualquer freguesia do país… Para dar início ao sonho tem que começar por garantir apoios partidários, implícitos ou explícitos, dos grandes partidos do sistema. Não é possível, nunca ninguém o conseguiu, chegar à presidência da República sem os grandes partidos por trás. As máquinas partidárias são decisivas nos resultados das eleições presidenciais. Pelos votos que têm cativos, agarrados ao aparelho partidário, pela logística de campanha e pelos recursos financeiros que mobilizam.

Por isso qualquer candidato procura, primeiro que tudo, posicionar-se perante o partido dominante na família política a que pertence para, depois, ter por garantida a sua escolha, ou o seu apoio. Nalgumas circunstâncias, a estratégia política do candidato é tal que deixa o partido, e às vezes os partidos, sem outro espaço que não o de seguir atrás. Esta é evidentemente a fórmula mágica do sucesso, que todos procuram, mas poucos encontram. É quando ouvimos o candidato dizer que está ali por si e pelos seus méritos, e que não recusa apoios, mas também os não pede. Pois… não os pede porque os tem certos!

Também neste domínio particular das relações partidárias dos candidatos as campanhas para as eleições presidenciais têm atingido momentos de grande dramatismo, com algumas lutas fratricidas a deixarem marcas na política portuguesa. Se em 1976 todos os grandes partidos, à excepção do PCP, se juntaram à volta de Eanes, logo na reeleição, em 1980, tudo se desfez. Com os partidos da direita a proporem Soares Carneiro, e o PS a romper com Mário Soares por causa do apoio a Eanes. As seguintes, em 1986, voltariam a fazer sangue no PS na guerra fratricida que opôs Mário Soares a Salgado Zenha, que o primeiro ganhou por 250 mil votos, resultado que o colocou na única segunda volta de todas as presenciais, que viria a ganhar.

Na reeleição de Soares, em 1991, o PSD, de Cavaco Silva, para não perder onde nada podia ganhar, deu-lhe o apoio tácito. E mesmo que bem expresso, não levantou grandes problemas internos. Os tempos não estavam para essas coisas. Nas seguintes, em 1996, Jorge Sampaio soube dar o passo em frente no momento certo, e congregou o seu partido. E facilmente toda a esquerda, porque do outro lado estava Cavaco Silva. Mas logo que terminou o consulado de Jorge Sampaio, em 2006 voltou o sangue ao PS. Com Mário Soares - mais uma vez! – a digladiar-se com outro histórico, Manuel Alegre. Com o partido apoiar Mário Soares, aos 80 anos, na primeira tentativa de regresso a Belém… Nas últimas eleições, em 2016, que inevitavelmente premiaram a mais bem construída estratégia eleitoral da História das presidenciais, o PS voltou, não ao sangue, que não deu para isso, mas a uns arranhõezitos.  

Mais, ou menos rasgados, com as feridas mais ou menos lambidas, com mais ou menos sapos para engolir, os partidos políticos continuam a ser a passadeira decisiva para entrar em Belém.

O Presidente e o regime

por Eduardo Louro, em 05.03.19

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O “Chefe de Estado”, a crer na designação, deveria ser quem manda. O “chefe”, o mais alto poder da nação, seja o rei, em monarquia, ou o Presidente, em República.

Já não é bem assim. Há mesmo Chefes de Estado, reis ou presidentes, que mandam muito pouco, estando limitados a um papel meramente decorativo. Assim acontece nos regimes parlamentares, onde o poder se realiza no Parlamento e/ou noutras câmaras de representantes. O Presidente – e afastemos a monarquia desta discussão, em democracia as monarquias não passam de símbolos – é verdadeiramente quem manda, quem tem o poder a sério, nos regimes presidencialistas. 

Entre os dois regimes, parlamentar e presidencialista, há um largo espaço onde cabem diversos modelos chamados semipresidencialistas, sistemas híbridos de partilha do poder executivo. O mais presidencialista dos regimes de referência semipresidencialista é certamente o francês. É mesmo tão presidencialista que há muita dificuldade em perceber por que lhe chamam semipresidencialista. E o português dos menos presidencialistas dos regimes semipresidencialistas.

A legitimidade política do Chefe de Estado varia também com o poder que lhe está atribuído, e são por isso muitos os regimes que não elegem o Presidente por voto directo, são simplesmente votados no Parlamento, de que sempre dependem. A eleição do Presidente da República por sufrágio directo e universal, independentemente dos poderes que lhe estejam atribuídos, traz-lhe sempre um reforço de legitimidade que inevitavelmente lhe reforça, se não os próprios poderes, o âmbito do seu exercício.  

É claramente o caso do regime português, que torna o Presidente uma figura central do regime. Independentemente dos poderes presidenciais, que nos primeiros anos da democracia foram sendo reduzidos em sucessivas revisões da Constituição, o Presidente da República Portuguesa tem um peso decisivo na condução dos destinos do país.

O Presidente da República é eleito para mandatos de cinco anos, renováveis por uma única vez. O que a prática política nacional, e em particular a prática política dos presidentes eleitos, transforma praticamente em mandatos de 10 anos, e em autênticos ciclos políticos.

O prestígio da função presidencial, e a ambição dos principais agentes da política nacional, transformas as eleições presidenciais em marcos históricos da política em Portugal. Os mais disputados, os mais espectaculares e até os mais dramatizados processos eleitorais da nossa democracia, têm acontecido em eleições presidenciais. Foi assim logo nas primeiras, em 1976, com Ramalho Eanes. Um militar, como dificilmente poderia ter deixado de ser, levado à ribalta da política por razões fortemente circunstanciais. Um presidente eleito pela direita, mas reeleito pela esquerda, no fim de 1980, nas mais dramáticas de todas as eleições disputadas em Portugal.

E voltou a ser assim em 1986, nas mais disputadas de todas, quando Mário Soares abriu o seu ciclo, que foi também o da integração europeia, derrotando Freitas do Amaral. Como não seria muito menos que assim 10 anos depois, quando Jorge Sampaio, depois de uma sábia jogada de antecipação, criou as circunstâncias para vencer Cavaco Silva, que vinha também ele de 10 anos à frente do governo. Tantos quanto teve de esperar para voltar a jogo, e abrir, pela primeira vez, as portas ao velho sonho da direita portuguesa, enunciado por Sá Carneiro pouco antes da sua morte: “uma maioria, um governo, um presidente”.

A História mostra-nos que, se a primeira eleição é dramaticamente disputada, a reeleição é sempre um passeio, e a simples consequência de um primeiro mandato exercido para alargar a base eleitoral e garantir a reeleição. E que só no segundo, já sem nada a perder, os presidentes mostram realmente quem são. E muitas vezes ao que vêm!

Xadrez partidário

por Eduardo Louro, em 26.02.19

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Os regimes (democráticos) tendem para a bipolarização partidária. É assim há muito tempo nas mais velhas e consolidadas democracias do mundo, com a divisão do poder por dois partidos alternantes.

Na Europa, no entanto, isso começou a ser posto em causa nos últimos anos. A excepção da velha Albion, a mais velha e ritualizada democracia europeia, serve apenas de confirmação da regra. No norte e no centro da Europa, passada que foi a hegemonia dos partidos da social-democracia dos anos 60 e 70 do século anterior, o espectro partidário foi-se alargando com a chegada de partidos focados em preocupações sectoriais, a começar nas questões ambientais, mas a passarem também, depois, por questões que se prendem com minorias, ou até com regiões. E a governação passou a depender de coligações entre, não raras vezes, vários partidos.

Na Europa do sul começou por se assistir à dinamitação do pulverizado xadrez partidário italiano com a implosão, em meados da década de 90, dos dois grandes partidos da clássica ingovernabilidade italiana, minados pela corrupção. Na verdade nunca o Partido Socialista e o da Democracia Cristã, os dois grandes partidos do sistema, já desaparecidos, conseguiram encontrar dimensão suficiente para garantir soluções governativas estáveis.

O não menos pulverizado xadrez partidário francês acabou por sucumbir recentemente, com o completo afastamento do poder dos protagonistas da velha ordem partidária - socialistas e republicanos.

Só na Península Ibérica, Portugal e Espanha, mais novatos nestas andanças da democracia, pareciam resistir ao desmoronamento dos velhos edifícios partidários e manter a alternância de poder entre os dois grandes partidos do centro do xadrez político. Já se percebeu que também em Espanha esse tempo está a chegar ao fim, e não tem a só a ver com os nacionalismos que, por cá, felizmente, não temos. Tem mesmo a ver com o surgimento de novos partidos que rapidamente encontraram chão fértil para crescer.

E aí está, Portugal como modelo único de preservação do seu xadrez partidário, insensível – para o bem e para o mal – ao que vai mudando no resto da Europa. Para o bem, porque parece que continua vacinado contra o populismo e a extrema-direita, afinal quem mais tem medrado com todas estas mudanças. Para o mal, porque fica-nos muitas vezes a sensação de uma democracia capturada pelos partidos que construíram o regime à imagem dos seus interesses.  

Poderão dizer-me que está é uma conclusão precipitada. Ou mesmo injusta. Pode até ser, mas temos visto muito boa gente, que parece cheia de boas ideias, tentar e não conseguir entrar. Em mais de quatro décadas tivemos uma única experiência de sucesso … mas efémero. E não sei se desencorajante, a funcionar como a punição pública de um atrevimento… E mesmo esse acabou por nascer de dentro do poder!

Rituais do regime (eleitoral)

por Eduardo Louro, em 23.02.19

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No pior dos regimes à excepção de todos os outros – desculpem-me a insistência, acredito que já canse, mas não sou capaz de o criticar, e não consigo deixar de o fazer, sem dizer isto – as eleições funcionam como uma espécie de catarse (nem sempre são purificadoras, é certo, mas libertam sempre muita coisa…) cheia de rituais.

O ritual começa com a pré-campanha que, como o nome indica, é o período que antecede o de campanha eleitoral, definido por lei. O que não vale de muito, porque ninguém percebe muito bem quando acaba um e começa o outro, tão igual é (quase) tudo. Para quem não tinha ainda percebido para que servem, nos dias de hoje, os “tempos de antena” aí está a explicação: é para que as pessoas saibam quando começa o período legal de campanha eleitoral.

A pré-campanha começa praticamente com o anúncio da data das eleições, mas há até quem defenda que começa mesmo no dia a seguir às anteriores. Eu não iria tão longe, e ficar-me-ia pela data da tomada de posse relativa às últimas eleições. A partir desse dia, invariavelmente, a oposição entra em pré-campanha eleitoral.

Depois, um pouco mais tarde, chegam as forças do poder. Dois anos antes das eleições já não pensam em mais nada, e o último orçamento, um ano antes, é já um manifesto eleitoral.

À medida que o tempo voa apressadamente para os últimos três meses, o ritual aperta. E lá vêm as arruadas, os comícios, o lombo de porco no prato de plástico (pois é, isso vai ter de mudar), a cerveja – muita cerveja – e agora, pelo menos aqui pela província, o porco no espeto. Depois vêm os interessantíssimos tempos de antena e sabemos que, até à apoteose final, naquela noite de sexta-feira, nos mais nobres espaços das maiores cidades do país, é campanha eleitoral a sério. Autocarros num corrupio, de uma ponta a outra do país, cheios de gente que não sabe ao que anda, mas lá vai … que a vida é dura. E no fim do dia há um prato de plástico com lombo de porco, e 10 ou 20 euros para meter na carteira.

E chegamos ao sábado. Dia de reflexão, um must do ritual. À meia-noite de sexta-feira acabaram-se as promessas, fecharam-se as luzes, apagaram-se as brasas, e secaram-se os barris de cerveja… Não há jornais, a televisão entretém-se com as minudências do costume, e ninguém fala de política. É só para reflectir… Um desperdício, quando nada ficou que merecesse reflexão. Reflexão mereceria que fosse aproveitado para obrigar toda a gente a recolher o material que deixou a poluir-nos o ambiente e as ideias, e que por lá se vai manter por longos meses.

E finalmente amanhece domingo, o grande dia. Se está sol – nunca há eleições no inverno - o pessoal vai para a praia. Uns poucos, que resistiram ao demónio e à desmotivação da campanha, e não resistem ao seu sentido do dever, e outros, que as carrinhas do cacique vão buscar a casa, lá vão pôr a cruzinha. Ou não, deixando o boletim em branco. Ou nulo, todo riscado, se a raiva for muita.

Ao fim da tarde – outra descoberta: é por isso que não há eleições no Inverno – fecham-se as urnas e começam a contar-se os votos. Mas já não interessa: às oito em ponto (há que esperar pelos Açores, que andam uma hora atrás do continente, e da Madeira) já as televisões abrem "o especial eleições" com os resultados. A partir daí, começamos por ficar a saber que todos ganharam e, depois, o que os portugueses disseram com o voto.

E nós a percebermos que, se calhar, perdemos todos … E que não dissemos coisa nenhuma. Que apenas cada um entregou o seu voto, por convicção, por sentido de utilidade ou por qualquer outra motivação... E que esse foi simplesmente somado a outros.

O que nem sequer acontece em tantas partes do mundo…

Talhar o sistema eleitoral

por Eduardo Louro, em 19.02.19

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(Foto daqui)

 

Assumindo, e elevando-a à categoria de dogma, a grande expressão de Winston Churchill que “a democracia é o pior dos regimes à excepção de todos os outros”, e consensualizadas as liberdades (de reunião, de expressão, de opinião, civis e religiosas), o sistema eleitoral emerge como o grande referencial da legalidade democrática.

Garantidas as liberdades democráticas, o que, como se sabe não acontece em grande parte do mundo, é o sistema eleitoral, isto é, o conjunto de instrumentos de apuramento dos mecanismos de representação, que faz a diferença. Há grandes democracias no mundo que não deixam de o ser por não terem os mais abertos sistemas eleitorais. Os mais friendly, como agora se diria. Basta lembrarmo-nos do sistema eleitoral americano que, na bipolarizada eleição do seu presidente, tantas e tantas vezes elege o menos votado, como aconteceu com o actual.

Na democracia representativa os mecanismos de representação devem perseguir um grande objectivo, assente em dois pilares fundamentais: (i) cada homem, ou cada mulher, dispõe de um voto (ii) para eleger directamente aquele que o representa.

Se damos o primeiro pilar – um homem/mulher, um voto – por indiscutível, e se a sua negação é a negação da própria democracia, é no segundo – eleição directa e pessoal – que as coisas se podem complicar. Não é que não seja na maioria dos casos possível votar directamente nas pessoas que entendemos escolher para nos representar, é porque é inevitável que, entre o cidadão eleitor e o seu representante, se atravessem outros instrumentos básicos da instituição democrática: os partidos políticos que, de instrumentos, passaram a donos da democracia na generalidade dos regimes democráticos, tornando-os nos piores… Mas, ainda e sempre, à excepção de todos os outros.

Os partidos políticos talham os sistemas eleitorais à medida dos seus próprios interesses. Estão sempre mais interessados em ajustá-los aos seus objectivos de poder que ao aperfeiçoamento dos mecanismos de representação.

Acontece assim em todo o lado. Não é por acaso que na maioria das democracias do planeta os regimes são dominados por dois grandes partidos. A grande vantagem das mais sólidas e referenciadas é que, depois, dispõem de instituições (políticas e não só) complementares e de sociedades de grande actividade cívica e motivadas para a cidadania, que as agarram aos seus velhos alicerces.  

Claro que os sistemas eleitorais também servem estratégias não democráticas de poder. É que não há  nenhum ditador que não queira mostrar que não governa em ditadura. É como se não houvesse ditador que não gostasse da democracia. Gostam tanto que nem aceitam votações são abaixo dos 90%. E não custa nada: basta um sistema eleitoral talhado à medida

Regionalização (de volta)

por Eduardo Louro, em 05.02.19

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Regresso à descentralização do Estado, depois do enquadramento aqui feito há dias.

É um regresso que se deve ao tema propriamente dito mas, acima de tudo, porque fervilha autenticamente na actualidade política nacional. E, não… Não é porque o país continental, do Minho ao Algarve, está a discutir em Assembleias Municipais as competências que o governo da nação decidiu transferir do centro para a periferia do Estado. É mesmo porque, vinte anos depois, a regionalização está de volta ao centro das preocupações políticas do centrão.

Nunca seria uma boa notícia, porque essa gente que verdadeiramente dispõe do país deveria ter no centro das suas preocupações coisas realmente centrais, para o país e para os cidadãos. Coisa que a regionalização não é, e está longe de ser. É no entanto tão pior quanto se percebe estar a ser cozinhada às escondidas, assim como quem não quer a coisa para, no último momento, nos apresentarem estudos, relatórios, pareceres e afins que demonstrem à evidência que, sem o dividir em regiões autónomas, o país não vai a lado nenhum.

É verdade, a acreditar no que se pôde ler num semanário do fim-de-semana, tudo está a ser preparado até ao mais ínfimo pormenor, no mais escondido dos segredos.

Na Assembleia da República já está criada uma comissão para a descentralização. Chamam-lhe “Comissão Independente para a Descentralização”, mas é constituída gente nomeada pelos partidos, todos conhecidos pelo seu fervor regionalista. Nada melhor para lhe justificar o nome: uma comissão independente constituída por gente escolhida pelos partidos entre os que, nas suas próprias fileiras, mais acerrimamente defendem a bandeira da regionalização! 

A Freitas do Amaral, que há 40 anos anda envolvido em tudo o que é comissão sobre a matéria, e que frequentemente reclama que a regionalização é a única parte não cumprida da Constituição, foi já encomendado um estudo. Independente, já se vê.

Há meses que se sabia que os dois principais partidos do regime se tinham entendido sobre a descentralização. Não se entendiam sobre nada, mas sobre descentralização, sim, tinha sido possível um esforço de convergência. Mas só se sabia isso, que havia entendimento. Não se sabia em quê, o que angustiava muitos dos profissionais do comentário político.

Começa hoje a perceber-se. A mesa de repasto está a ficar demasiado pequena. Adivinham-se mais quatro anos de seca... E o melhor é mesmo que o Estado precise de mais Estado. Não há entendimento que falhe!

Despotismo esclarecido – uma hipótese?

por júlio farinha, em 25.01.19

O problema da democracia formal não é a inexistência de elites esclarecidas que possam governar mas reside nos eleitores. A  impreparação destes para escolher é manifesta. Concorrem para esta impreparação muitos factores entre os quais se distingue a iliteracia, a alienação e a sub-cultura. Nestas condições é improvável que os eleitores escolham os melhores para governar. Que podemos esperar durante os próximos tempos para Portugal? Ou as coisas continuam na mesma - o poder tem mecanismos para se perpetuar no poder, ou chegará uma altura em que os debaixo já não suportam viver mais na sub-miséria e dá-se uma Revolução ou tumultos sociais de envergadura, ou então há que recuperar ideias intemporais que constituam uma alternativa viável para a situação. Hoje, abordarei a hipótese de se constituír em Portugal um regime de despotismo esclarecido.

O despotismo esclarecido foi modalidade de governo no século XVIII em alguns países da Europa, nomeadamente na Áustria, Prússia,Rússia, Espanha  Por cá também fez figura pela mão e cabeça do Marquês de Pombal.

Estes governos deram forma aos respectivos estados centralizados. Já não têm sequer teias de aranha. No seu lugar surgiram por todo o lado os modernos estados e governos absolutistas. Um deles é o ficcionado estado democrático chefiado por verdadeiros monarcas da república. O exemplo mais caricato da "representatividade" destes novos poderes que deviam por definição ser liberais é o study case dos EUA onde, por erro de casting dos votantes norte-americanos e mercê da habilidade técnica dos russos , está no poder uma trumpalhada de se lhe tirar o chapéu ou o boné se for fala de povo.

O antigo despotismo esclarecido foi uma forma privada e privativa de governar os assuntos públicos. Foi um regime absolutista? Sim. Só que ilustrado. O estado assentava no monarca de poder absoluto - ao arrepio daquilo que defendiam os iluministas – cuja justificação foi esclarecida por Thomas Hobbes no seu Contrato Social

Os contributos essenciais para a inspiração e realização de tais poderes foram oferecidos pelos iluministas dos quais destaco Kant e Voltaire.

O despotismo esclarecido foi beber ao iluminismo a ideia que o homem devia conferir todo o poder à Razão a qual predominaria sobre a Fé das religiões. Esta concepção rompia com a tradição medieval. O iluminismo tentou difundir as perspectivas filosóficas, sociais e políticas por todos os domínios da crítica da Razão sobre todos os campos do conhecimento. Tratava-se, nomeadamente, de desmoronar ideias feitas herdadas do passado e que resistiam à crítica. As ideologias religiosas não foram excepção. Em seu lugar deviam vir à luz as ideias do progresso e da luta pela perfeição e pelo conhecimento amplo e profundo.

Os iluministas não conseguiram evitar o absolutismo com o qual não concordavam. Aceitando embora o monarca poderoso diziam que este devia ser "vigiado" por um Conselho ou Constituição.

O ideal iluminista teve grande impacto. Foi a partir dele que se iniciou o fim do colonialismo e se procurou atenuar a preponderância do absolutismo e promover o liberalismo económico versus mercantilismo. Em França estas ideias e práticas levaram ao grande movimento universalmente conhecido por Revolução Francesa (1789). Também data deste período tão intelectualmente rico a publicação da famosa Enciclopédia Francesa (1751-1780) organizada por Diderot e D`Alembert (35 volumes). Tem o sugestivo título de Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné des Sciences des Arts et des Métiers.

Como já se viu, o despotismo esclerecido não   adoptou todas as sugestões dos iluministas. Governaram absolutamente  pela mesma razão que os políticos actuais vão para o poder – para se servir à manjedoura do orçamento. O poder absoluto é de facto um problema que tem que ser resolvido. Talvez o soberano não tenha que ser soberaníssimo e haja que o rodear de iluministas ou, no presente, por uma elite esclarecida. De resto, voltando atrás, o absolutismo de que se vem falando promoveu as ideias de progresso, reforma e filantropismo.

Nos dias de hoje não encontro outros obstáculos nem razões para que não se adopte a figura do Estado absolutista presidido por uma figura de grande , plural e profundo saber e sensatez. Não me repugna até  mesmo ter como primeira figura do Estado um soberano (não de cadeia dinástica) que se reúna de um pequeno grupo de assessores promovidos localmente e/ou escolhidos por ele próprio que leve o Estado às seguintes intervenções: modernização do sector produtivo com especial enfoque na agricultura, na indústria e no comércio, nacionalizando grande parte desses domínios considerados estratégicos; combate às desigualdades económicas e sociais, irradicação da pobreza através do crescimento económico; promoção de uma ampla educação de adultos nas várias áreas do saber e formação para a cidadania: colocação dos órgão de comunicação sob a alçada do Estado como forma de uma séria e profunda educação pública.

Este tipo de Estado, conseguidos os objectivos a que se propõe terá tendência para acabar devido à criação de autonomias. Quando não houver necessidade de qualquer estado por já não existirem classes dominantes e dominadas estaremos numa sociedade ideal: sem classes. Nesta nova sociedade, que germina nos escombros da velha  e que teve no filósofo e economista Karl Marx uma figura de grande porte teórico-prático. Nessa nova sociedade o trabalho será  um prazer sempre e não um fardo pesado, cada um terá tempo para fazer o que mais gosta individualmente falando, não haverá conflitos nem guerras só diversidade na unidade pacífica.

Não sei se esta reflexão é tão utópica que não valha a pena deter-mo-nos nela. A mim dá-me prazer pensar que  é possível. Se o não for no nosso tempo que o seja no dos nossos descendentes. Por mim vou-me preparando e pensando que para lá me devo dirigir. A ideia quando racional é real, como dizia Hegel.

Se notarem alguma incongruência que anule ou limite a racionalidade desta proposta digam qualquer coisinha.

 

 

Estado de graça

por Eduardo Louro, em 23.01.19

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Tem graça... Se há alguma coisa que não é de graça é o Estado. Nem sequer barato, é bem caro, por sinal. 

O estado de graça é um estádio do exercício do poder. No Estado e em todos os estados dentro do Estado.  O estado de graça não é o estado da piada, porque não é com piadas que se chega ao poder, mesmo que lá cheguem muitos palhaços. Como o Tiririca, mas isso é no Brasil onde o Estado até tem muitos Estados, e por isso é federal. Que não tem nada a ver com o feder, que por lá fede nos últimos tempos... Também não é o estado em que se encontrava Maria, quando um anjo lhe anunciou o estado interessante em que o Espírito Santo a deixara, antes de ser nome de banco e de nos ter feito a todos o que  teria então ficado por fazer. Esse estado de graça, sem pecado nem mácula, não dá para chegar ao poder. Alma limpa não dá para agarrar as tarefas do Estado, mas é preciso um estado de alma que não valorize o que a suja. Todas as manchas sujas têm de estar todas bem escondidinhas ... nem que seja umas atrás das outras. 

O estado de graça também não é por isso um estado da alma, por muitos estados de alma que possa deixar em estado de sítio. O estado de sítio é que não tem graça nenhuma, nem mesmo quando é declarado em estado de graça, o que às vezes, em estado de emergência, até acontece.

Mas o que é, afinal, o estado de graça? 

O estado de graça é, como comecei por dizer, um estado no exercício do poder. Por isso um bom estado, um estado interessante, sem que seja o tal estado. É temporário, como tudo, afinal - não há mal que sempre dure, nem bem que nunca acabe... Nem no Estado. É um período de benevolência, aquele espaço de tempo em que tudo o que está mal, foi feito pelos outros, e em que, mesmo sem fazer nada, tudo tem graça. 

No exercíco do poder, especialmente quando conquistado no tal regime que é o pior, à excepção de todos os outros, saber gerir o estado de graça é mais que uma arte. Há gente capaz de o fazer magistralmente, guardando essa competência como verdadeiro segredo de Estado, porque é em cima do estado de graça que se constrói o verdadeiro poder, aquele que domina sobre a estrutura e que agarra numa só mão o aparelho de Estado, nome por que invariavelmente é conhecida a sala das máquinas do Estado. Quanto mais se prolongar o estado de graça, maior é o tempo de aconchego no poder. Sim, porque isto de chegar ao poder tem muito que se lhe diga. Não é chegar, sentar e ficar confortavelmente instalado, com tudo no seu sítio, ajustado à medida. Nada disso...

Repare-se como até para o próprio Estado Novo que, como se sabe, era um de todos os outros regimes da excepção que Churchill deixou famosa, foi importante o estado de graça. Na altura chamou-se-lhe Primavera, nome que estaria então certamente na moda... Que vinha, como continua a vir, de Paris, mas também de Praga. E durou pouco, depressa se voltou a fazer inverno. Daí que que a sala das máquinas tenha começado a deixar entrar água até rebentar, e cair de podre naquela madrugada de Abril!

 



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