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Podemos abordar a política por muitas vertentes. Os regimentos, os processos, as expectativas... mas há um que é fundamental: os protagonistas.
Por aqui, tentámos nunca abordar a política pela vertente dos actores, os cidadãos com nome e vida pessoal que incorporam e executam os diferentes papéis políticos na nossa democracia. Quisemos que estes nossos escritos fossem uma reflexão e não uma reacção à gestão dos actores. Mas, mantendo os actores ausentes do discurso, não poderia deixar de aflorar os requisitos para se ser actor político.
A idade não é importante - quanto mais cedo a noção política, que não a doutrina partidária, entrar na vida de crianças e jovens, maior a probabilidade de se formarem cidadãos atentos e politicamente activos. Cidadãos atentos e politicamente activos exigem dos seus governantes, não se limitam a respingar pelos cantos. Exigem dos seus governantes, são melhores governantes.
Mas a experiência, o conhecimento, a dinâmica, a capacidade analítica, a idoneidade, a integridade, a capacidade argumentativa e negocial, ... as capacidades individuais, tanto quanto as competências, podem fazer a diferença na hora de escolher entre um e outro actor para um mesmo papel. Mesmo sabendo que, actualmente, apenas a nível local podemos escolher os actores, nada nos impede que sejamos exigentes também com os que não podemos escolher - mas sobre os quais poderemos, sempre, respingar, de preferência sustentada e consistentemente.
Por outro lado, temos a Lei das Incompatibilidades que, aprovando o regime do exercício de funções por titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos, define regras tendentes à transparência de teres, haveres e deveres. Basicamente, define o que podem ter e que cargos podem exercer os governantes antes, durante e depois de o serem. Por exemplo, prevê que um governante respeite um período de nojo antes de assumir funções em entidades que tenham estado sob a sua tutela ou com as quais tenha tido relações de interdependência. Um período que é relativo, podendo ser de 3 anos para umas funções e de 5 anos para outras, como recentemente aprovado para os lugares de governador do Banco de Portugal e direcção das entidades administrativas independentes. Também relativo é o que se entende por relações de interdependência. Alguém que tenha tutelado uma pasta terá conhecimento privilegiado sobre a mesma durante um período de tempo, daí o período de nojo - que apenas se aplica a empresas tuteladas ou com as quais houve interacção. Então e o conhecimento privilegiado sobre as suas concorrentes? Da mesma forma, podem existir empresas que foram e voltarão a ser dos governantes, mas cuja gestão e administração temporariamente são entregues a familiares e amigos. Proibir esta acumulação tem o objectivo claro de evitar favorecimentos, mas a consequência pode ser, em última análise, a impossibilidade de um governante local ser oriundo da área governada, sob pena de ter de adquirir os serviços em concelhos vizinhos e quiçá distantes.
Nestas coisas de ser transparente e honesto não basta escrevê-lo, há que sê-lo e parecê-lo.
Por isso a Lei das Incompatibilidades não ser suficiente. Há que perceber que servir a causa pública é um objectivo, não um trampolim. Que gerir a coisa pública é uma honra, não a sorte grande. E, para isto, é preciso ter actores mais bem formados, mais conscientes, mais transparentes. E mais bem remunerados, para que possam, sem perdas, abdicar de gerir o que é seu enquanto gerem o que é nosso. Bem remunerados, e bem escrutinados.
Porque nestas coisas de ser governante há que confiar, confirmando.
É este o último postal que escrevo no Rasurando. Foi um caminho muito desejado, muito estimulante e interessante, feito com autores que muito aprecio e cuja companhia não me canso de agradecer. No entanto, o projecto era exigente, muito exigente!, e a minha vontade muito superior à minha disponibilidade, esta tantas vezes aquém da necessária para acompanhar quem comigo embarcou.
Agradeço a quem aqui me acompanhou, autores e leitores, e desejo que um dia nos encontremos numa sociedade politicamente mais madura.
imagem: Kevin Spacey em House of Cards
(Imagem daqui)
A fiscalização do poder executivo é um dos pilares fundamentias da democracia, juntamente com a separação de poderes e o sufrágio directo e universal dos cidadãos em eleições livres.
No regime democrático português, semi-presidencialista mas, como já vimos, mais parlamentar que presidencialista, com o poder executivo fortemente concentrado no governo, a fiscalização da acção governativa reparte-se formal e fundamentalmente pela Assembleia da República, pelo Presidente da República, pelo Tribunal Constitucional, e pelo Tribunal de Contas.
O Parlamento, a Assembleia da República, órgão do poder legislativo, é também o órgão de fiscalização do governo por excelência. É ao Parlamento que o governo presta contas, e é o Parlamento que lhas exige. Talvez por isso se chame Assembleia da República, e não simplesmente Assembleia Legislativa.
São muitas as decisões do governo que dependem da aprovação parlamentar, dependência que emana justamente do poder de fiscalização da Assembleia da República. Mas não se esgotam aí as suas competências de fiscalização, prolongam-se pelos trabalhos das comissões parlamentares das diferentes áreas, e pela capacidade de chamar, a essas comissões ou ao plenário, os membros do governo sempre que entenda que há actos da governação a eslarecer.
O Presidente da República tem também competências de fiscalização do governo, que se revelam, sem que se esgotem, na promulgação dos seus actos legislativos. Não se esgotam nesse acto de ratificação, espalham-se por tudo aquilo que cabe no que se convencionou chamar a magistratura de influência do Presidente. Ao "chamar a Belém" o chefe do governo, ou quaisquer ministros do elenco governativo, o Presidente não só influencia ou previne a acção governativa, mas também a fiscaliza.
Também o poder judicial dispõe de órgãos de fiscalização do poder executivo: o Tribunal Constitucional, que fiscaliza os actos do governo, mas também os do poder legislativo, no que respeita ao cumprimento dos preceitos da Constituição; e o Tribunal de Contas, que fiscaliza os actos do governo à luz dos princípios da transparência e do rigor da gestão da coisa pública.
Mas, numa democracia adulta, sólida e saudável, a opinião pública e a cidadania são - devem ser! - os mais importantes agentes de fiscalização do poder executivo. E nessa democracia, adulta, sólida e saudável, não há opinião pública nem cidadania sem uma comunicação social independente, forte e competente.
Também aqui a nossa democracia já viveu melhores dias. Estará mesmo a viver os piores dos seus piores dias!
Já aqui se falou do Programa de Governo, aquele que será tão mais fiel ao programa eleitoral do partido que chefia o executivo quanto mais representação este tiver na Assembleia da República - partindo do habitual pressuposto que a indigitação para Primeiro-Ministro recai sobre o representante máximo de um partido sufragado.
A criação dos cargos de Ministro e de Secretário de Estado está directamente relacionada com o Programa de Governo, pois é este que orienta todas as acções do Governo em formação - que, por sua vez, dependem mas também obrigam à constituição de uma equipa que as assuma. A generalidade dos Ministros ficará responsável por um Ministério, embora tenha havido nos quatro primeiros Governos Provisórios e no primeiro Governo Constitucional a nomeação de ministros sem funções executivas, os chamados Ministros Sem Pasta. Parece absurdo, um alto membro do poder executivo sem aparente função executiva, mas não esqueçamos que o Conselho de Ministros é um órgão colegial onde apenas os Ministros têm direito de voto.
Um Ministério é um departamento superior da administração do Estado, necessariamente com uma vasta amplitude pois tutela toda a sua área ou áreas temáticas. As secretarias de estado, por sua vez, são departamentos com uma área mais específica de intervenção, independentes entre si mas coordenados dentro de um mesmo ministério. A importância que for atribuída a cada área temática num programa de governo determinará a quantidade, a organização e, até, a nomenclatura de ministérios e secretarias.
Há ministérios aparentemente incontornáveis - hoje ninguém pensaria em criar uma equipa executiva sem um ministro das finanças ou sem um ministro da defesa... no entanto, e de acordo com o programa de acção delineado, um Ministério das Finanças pode bem ser um Ministério das Finanças e da Administração Pública, como em 2004-2005, ou Ministério das Finanças e do Plano, como entre 1978 e 1985. Já tivemos Ministérios da Habitação, Ministérios da Indústria, Ministérios do Equipamento Social, até um Ministério da Qualidade de Vida tivemos entre 1981 e 1985. Há áreas que ora dão origem a ministérios por direito próprio, como por exemplo o actual Ministério do Mar (que já o foi em 3 outros governos, 1983-1985, 1991-1995, 2015-2019), ora são (pouco?) estrategicamente consideradas em conjunto com outras, como foram o Mar (ou, mais redutor, as Pescas) e a Agricultura em diversos Ministérios:
Enfim, poderia dar muitos exemplos, mas escolhi este porque o Mar é uma das nossas maiores riquezas (somos um dos países com maior Zona Económica Exclusiva do mundo) e nem isso lhe garante lugar de destaque entre as gentes que nos têm governado.
Faz sentido que quem vai governar o país se organize como entende mais adequado ao alcançar dos objectivos que se propõe. Mas ter-se-á de alterar a nomenclatura dos ministérios para o conseguir? Cada alteração promovida tem encargos para o Estado, i.e, para nós - desde o papel timbrado e os carimbos aos muitos sistemas informáticos, logótipos, organogramas, placas de identificação dos funcionários, nas secretárias, nos gabinetes, nos edifícios, nas viaturas... a que acrescem tempos de paragem ou alterações executadas em horário extraordinário, tudo isto multiplicado por tantos gabinetes e tantos departamentos regionais quantos os existentes na Administração Pública sob tal tutela. Não é uma conta leve e só por si deveria obstar tanta mudança.
Além das alterações entre legislaturas, de quando em vez há umas remodelações governamentais com alteração dos ministros e dos próprios ministérios - como em 2013 com o XIX Governo, em que o Ministério da Economia e do Emprego de um titular voltou a ser apenas Ministério da Economia com outro titular, tendo o Emprego ido parar às mãos do Ministro da Solidariedade e Segurança Social - que, mantendo-se no cargo, passou a ser Ministro da Solidariedade, Emprego e Segurança Social. Parece que, afinal, a organização do Estado não estará apenas relacionada com o Programa de Governo mas também com os interesses de quem ocupa o cargo ou com as forças partidárias representadas no executivo. Afinal, o Programa de Governo é aprovado para a legislatura completa, ao contrário do Orçamento de Estado (aqui também se fala dele) e das Grandes Opções do Plano, que são de aprovação anual - não me parece que tenha qualquer sentido alterar a estrutura cimeira da administração pública se as suas linhas de orientação se mantêm. Mas alteraram, no XIX Governo e também no IX, por exemplo, ambos formados por coligações pós-eleitoriais.
Enfim, esta contínua alteração, além dos custos e das dores de cabeça para o cidadão que nunca sabe bem a que Ministério se dirige, apenas revela que neste cantinho à beira-mar plantado os canteiros mudam conforme o hortelão. Em 46 anos de III República, e após 6 Governos Provisórios e 22 Governos Constitucionais, apenas 7 ministérios chegaram aos dias de hoje mantendo o nome criado em executivos anteriores*: Administração Interna (desde 1974), Justiça e Saúde (desde 1983), Defesa Nacional, Finanças e Negócios Estrangeiros (desde 2005) e Economia (2013). Não existe consenso sobre a organização do poder executivo central, e este parece-me ser um problema de regime: não havendo continuidade na estrutura, poder-se-à esperar continuidade nas políticas estruturais?
* Não considerei os Ministérios criados pelo anterior executivo uma vez que o Primeiro-Ministro se mantém. Ainda assim, aponto que o Ministério do Ambiente passou a ser Ministério do Ambiente e da Transição Energética no âmbito de remodelação ministerial ocorrida em 2018, na anterior legislatura.
A acção governativa, o exercício por excelência do poder executivo, guia-se por um programa. Um plano programático delineado de acordo com as opções políticas apresentadas a sufrágio popular e, nessa medida, legitimado pelo voto democrático.
Quanto mais expressivo for o resultado eleitoral alcançado, mais perto o programa do governo poderá ficar programa eleitoral sufragado. Quanto menos expressivos forem os resultados eleitorais menor será a capacidade de influência no programa do governo. Quanto mais dispersos forem os resultados eleitorais, maior é a necessidade de arranjos e acordos parlamentares e, naturalmente, o indispensável cruzamento de programas eleitorais.
A democracia representativa tem justamente aqui um dos seus pilares. Os eleitores não escolham apenas os seus representantes no Parlamento que, depois, aprovando o programa que o governo lhe apresenta, aprovam a governação. Os eleitores escolhem entre programas políticos. Ou deviam.
Na realidade poucos são os eleitores que conhecem os programas políticos que se apresentam a sufrágio, e que exercem conscientemente o seu voto em função das opções que, dessa forma, lhe são apresentadas. E essa é, logo à partida, a primeira grande brecha na cidadania, e uma das maiores fragilidades das democracias actuais.
São cada vez menos os cidadãos que exercem o seu dever de voto na generalidade das democracias, e na portuguesa em particular. E os que vão votar, os cidadãos eleitores, exercem a sua opção mais em função de simpatias políticas, numa espécie de clubismo, e de apelos e sugestões do marketing político, do que propriamente em função da avaliação que fazem dos programas que lhe são apresentados. A que não ligam muito, nos tempos que correm...
Ninguém parece muito preocupado com isto. E menos ainda em alterar este estado de coisas. Pelo contrário. Cada vez mais os actores políticos privilegiam o sound byte, a ideia simples que passe facilmente, mesmo que não tenha qualquer espécie de substância. Importa-lhes o que melhor passe na televisão. E, agora, claro, nas redes sociais, onde a manipulação não conhece limites . E a promessa fácil, que mais facilmente se possa descartar na primeira oportunidade.
O programa de governo que, em tese, seria uma peça da espiral no círculo virtuoso da democracia, acaba assim por ser apenas uma peça decisiva do funcionamento da máquina do regime. Tão formalmente decisiva que a sua aprovação se confunde com a aprovação do governo. Não é o governo que passa ou não passa no Parlamento. É o programa do governo!
O Poder Executivo em Portugal está centralizado no Governo. Mas a nível local é também exercido pelas Autarquias, especificamente o Executivo das Câmaras Municipais e o Executivo das Juntas de Freguesia.
É engraçada a forma como elegemos o pessoal que nos governa, quer a nível central quer a nível local.
Quero dizer, é engraçada a forma como elegemos os que elegemos!
O Governo central não é eleito. Votamos para a Assembleia da República, e normalmente - atenção a este normalmente! - o presidente do partido mais votado (ou da coligação) é convidado pelo Presidente da República a formar governo, depois de ouvidos os partidos com representação parlamentar - certamente para saber até que ponto tal personalidade terá a aceitação dos deputados e, portanto, nossa, já que os deputados são os nossos representantes eleitos.
O primeiro-ministro assim indigitado cria os ministérios que entende mais adequados ao seu programa de governo, escolhe quem quer para ministro e secretário de estado, e apresenta o resultado ao Presidente da República, lhes dá posse. Depois, vem a segunda parte, ser aprovado pela Assembleia da República. E é aqui que a coisa se pode complicar. Tecnicamente, a AR não aprova nem desaprova o Governo nem o seu programa de governo, mas pode rejeitá-los [e aceitá-los]. Ao votar a rejeição do Programa de Governo, a Assembleia da República demite formalmente o Governo recém-formado. Também o pode demitir após aprovação de uma Moção de Censura, ou da não aprovação de uma Moção de Confiança.
Recordam-se do normalmente ali de cima? Pois é. A indigitação do chefe do partido mais votado é a hipótese mais comum de dar início ao processo de constituição do Governo, mas o PR pode, pura e simplesmente, descobrir que tal cidadão não reúne consenso junto da AR, ou estar aquele envolvido em alguma situação que não dignifique ou que impeça qa ocupação de tal alto cargo, pelo que, mediante consulta ao Conselho de Estado e aos partidos, o PR pode perfeitamente decidir indigitar outro cidadão. Até pode optar por um que nada tenha a ver com os partidos representados. Claro que apenas o fará invocando razões muito fortes, afinal a decisão é do PR mas na verdade resulta da análise da posição dos partidos e da sociedade e não de uma arbitrariedade -o que não significa que não possa tentar forçar suavemente a aceitação de um nome.
E qual a nossa intervenção no processo de escolha da mais alta figura do executivo e da sua equipa?
Escolhemos directamente o cidadão que vai indigitar o Primeiro-Ministro e votamos nos partidos que colocarão na Assembleia da República os cidadãos que rejeitarão [ou aceitarão] o Programa de Governo, e que aprovarão (ou não) as Moções de Censura ou de Confiança. Pronto, é isto. Ficamos a saber quem nos governa depois das eleições para a Assembleia da República - é o que dá sermos uma democracia representativa.
No entanto...
O executivo camarário é votado directamente por nós, cidadãos! Sabemos exactamente qual o cidadão e qual a equipa que propõe para nos governar a coisa pública local. Embora possa não ser exactamente a equipa que vai funcionar, pois esta depende do número de vereadores eleitos pelo partido mais votado - e pelos outros. Aos vereadores eleitos o Presidente da Câmara atribui pelouros - pequenos ministérios à escala local. E haverá vereadores sem pelouro, que ficam assim a fazer parte do órgão colegial que é o executivo camarário mas não assumem qualquer função executiva directa.
Para as freguesias, o sistema de formação do executivo volta a ser como o do governo central, com uma pequena diferença: a lei prevê que o Presidente da Junta seja o presidente da lista mais votada para a assembleia de freguesia. A equipa que o acompanhará, com um mínimo de dois vogais com funções de tesoureiro e secretário, é eleita pela Assembleia de Freguesia. Ou seja, voltamos a ter executivos escolhidos pelos nossos representantes, mas desta vez o chefe do executivo trabalha com a equipa que lhe escolherem.
São estas três formas distintas de tentar que as tendências existentes na sociedade estejam representadas nos órgãos executivos.
Mas serão a melhor forma de criar as equipas que nos deverão gerir a nós e à coisa pública?
Esta questão da escolha dos executivos pode ser abordada em vários holofotes. Como é matéria que me incomoda sobremaneira, não é de admirar que a aborde em todos os holofotes possíveis...
Se são os governos a sede do poder exectivo formal, é na administração pública que ele se manifesta. É a máquina do Estado que exerce o poder de facto, é ela que mexe todos os cordelinhos, e que tece as verdadeiras teias do poder.
Controlar essa máquina, ou deixar-se por ela ser controlado, é sempre, em tese, o primeiro e principal dilema de um governo.
Essa máquina é transversal a todos os regimes, e países, mesmo que com pesos muitos distintos no seu funcionamento. Inglaterra, mas também Itália, são dois exemplos de regimes com forte tradição de administração pública, com poderosas máquinas de Estado, que se sobrepõem aos governos. Para o bem e para o mal. Condicionando-os fortemente, como no caso inglês, ou respaldando-lhe as debilidades, como no italiano.
A excelente série britânica, o clássico "Yes minister", na forma e na exuberãncia com que caricatura a submissão dos membros do governo ao pragmatismo dos manhosos altos funcionários do reino, mostra-nos o verdadeiro poder da administração pública inglesa. E a História italiana mostra-nos como um país consegue sobreviver, sem grandes dramas, a quedas sucessivas de governos, e a largos períodos de vazio de poder.
Portugal não tem esta tradição. Em Portugal a tradição alinha com a tese da sacro-santa confiança política. O governo, para garantir a sua eficácia, tem de ter a confiança política da máquina, um eufemismo - somos um país de eufemismos - de confiança política na máquina. Parece a mesma coisa, mas não é!
Em Portugal muda o governo e logo surge uma frenética dança de cadeiras ao longo de toda a máquina. Que, à convencional administração pública, dos gabinetes ministeriais, das delegações e das direcões gerais, com o passar dos anos, foi juntando uma série de entidades reguladoras e umas larguíssimas dezenas de institutos públicos.
Tudo sob o amplo chapéu, um largo sombrero mexicano, da confiança política, eufemismo - mais um - dos jobs for the boys que Guterres imortalizou, em mais uma dos paradoxos da política nacional. Que, sendo um dos factores do anquilosamento da administração pública, é também um dos factores de bloqueio do regime.
A discussão rodará sempre em torno do dilema central entre uma administração pública de alta competência profissional, capaz de manter todas as pontas do país bem seguras, mas necessariamente poderosa, e porventura capaz de sabotar as decisões do poder democrático; e uma administração pública às ordens de um poder eleito, mas porventura sem competência crítica para filtrar decisões e induzir-lhe conhecimento e eficácia.
Sendo que a velha aspiração popular de "chuva no nabal e sol na eira" continua inatingível, talvez valha mesmo a pena procurar o meio, o sítio onde se localiza a virtude. Cortar de vez com a relação entre "confiança política" e os " jobs for the boys" talvez ajude a encontrá-lo.
Do Movimento das Forças Armadas que há 46 anos saiu à rua para depor o governo de Marcelo Caetano, pôr os Pides a fazer xi-xi pelas pernas abaixo, acabar com uma ditadura podre de velha e dar início a uma revolução, saíram os primeiros órgãos do poder executivo que se pretendia provisório.
O poder executivo estruturado, esse haveria de sair de eleições livres, sempre negadas aos portugueses, como se a elas não tivessem direito. Ficou logo dito pelos capitães de Abril, para que não restassem dúvidas.
Quando Marcelo Caetano, retido no Quartel do Carmo onde se refugiara sob a protecção da GNR, condicionou a sua rendição à simbólica passagem do poder ao General Spínola, introduziu o primeiro grão de areia na engrenagem pura e virgem de Salgueiro Maia.
Como não percebiam patavina do manuseamento daquelas armas do poder, os capitães de Abril sabiam que teriam de o entregar às mãos de gente que soubesse mais um bocadinho daquilo e que fosse levada mais a sério. Aquilo era coisa para generais e almirantes, não para capitães!
E o primeiro órgão de poder foi logo apresentado ao país no dia seguinte, a 26 de Abril de 1974. Chamou-se Junta de Salvação Nacional, e era composta por sete elementos: António de Spínola, Francisco da Costa Gomes, Jaime Silvério Marques, Diogo Neto, Galvão de Melo, Pinheiro de Azevedo e Rosa Coutinho, cinco generais e dois almirantes, representando os três ramos das forças armadas. Spínola, com a unção de Marcelo Caetano e, de todos, o de maior notariedade pública, assegurou a presidência da junta militar e, por inerência, logo de seguida, a Presidência da República.
O governo, provisório evidentemente, tomaria posse três semanas depois, a 16 de Maio, já a revolução ia fazendo caminho. Na altura era apenas o governo provisório, chefiado por Adelino da Palma Carlos, um prestigiado advogado que na ditadura se tinha salientado na defesa de activistas políticos perseguidos pelo regime. Quando lhe permitia alguma espécie de defesa, bem entendido. Pouco depois passaria a ficar para a História como I Governo Provisório, o primeiro de seis em dois anos, e incluía representantes dos principais partidos políticos, já no terreno. Lá estavam Mário Soares, Salgado Zenha e Raul Rego do PS, Sá Carneiro e Magalhães Mota, do novíssimo PPD, Álvaro Cunhal, do PCP e um mestre - o meu mestre - o saudoso Francisco Pereira de Moura, do MDP/CDE, então tido por um dos principais partidos do emergente xadrez político, mas também por satélite do PCP. O ministro sem gravata!
Duraria pouco. Menos de dois meses, porque as ideias iam fervilhando, a revolução caminhando e a conspiração crescendo. Seguiu-se o segundo, já com menos gente dos partidos, e sem Sá Carneiro, que não quis continuar, e chefiado por Vasco Gonçalves, um militar do MFA que viria a tornar-se figura central do PREC, o processo revolucionário em curso.
Duraria pouco. Porque, pouco mais de dois meses, Spínola achou que era tempo de travar a revolução, e tempo de dar outro tempo, e rumo, à descolonização. E precipitou o 28 de Setembro, a primeira estação do PREC. Perdeu, saiu de cena e foi susbstituído na Presidência da República por Costa Gomes.
Vasco Gonçalves é que estava de pedra e cal, e voltou a encabeçar o governo. O terceiro, que pouco variou do anterior. Durou 6 meses, o tempo que Spínola demorou a preparar nova conspiração, o 11 de Março.
Nesta segunda estação do PREC a revolução acelerou o passo. A Junta de Salvação Nacional foi extinta, e no seu lugar surgiu o Conselho da Revolução que, consagrado na Constituição do ano seguinte, teria longa vida. Mas nem por isso menos conturbada.
Vasco Gonçalves lá continuava, já no quarto governo. Que tinha agora dois representantes de cada um dos três principais partidos - PS, PPD e PCP. E o regresso do mestre, do meu mestre, Pereira de Moura.
A revolução acelerava a fundo em direcção ao Verão Quente, e o quarto governo não teve pernas para acompanhar o passo. Caiu a 8 de Agosto de 1975, no apogeu do PREC naquele Verão escaldante, para dar lugar ao V governo provisório.
Era o governo do sim ou sopas da revolução. Já sem qualquer representante dos partidos políticos, à excepção de Francisco Pereira de Moura, um eminente académico que não era exactamente um líder partidário, e nem sequer tinha o perfil do político convencional.
Durou 41 dias, morreu a 19 de Setembro atropelado pelo documento dos nove, que reduzira a pó o documento guia da Aliança Povo-MFA, assinava a guia de marcha do PREC e enterrava o gonçalvismo.
À frente do VI surgiu Pinheiro de Azevedo, um dos dois almirantes na antiga Junta de Salvação Nacional. Os partidos voltariam em força. Especialmente o PS, que vencera as constituintes, com seis ministros. E o PPD, em segundo lugar nessas eleições, com três. O PCP ficara com um. Melo Antunes, o intelectual e pensador do MFA, era o ministro dos negócios estrangeiros.
Foi o último governo provisório e Pinheiro de Azevedo passou por um pouco de tudo. Esteve sitiado em S. Bento, com os deputados, no cerco dos operários da construção civil ao edifício onde então funcionava a Assembleia Constituinte. Passou naturalmente incólume pela derradeira estação do PREC, o 25 de Novembro, e acabou por abandonar o governo um mês mais cedo para se candidatar às presidenciais, poucos dias depois, sendo substituído por Almeida e Costa. Que levaria o VI governo até ao fim, passando a pasta ao I governo constitucional, em 23 de Julho de 1976.
Conhecido por um certo desbragamento, Pinheiro de Azevedo acabaria por nunca ser levado muito a sério. Nas presidenciais de 27 de Junho de 1976, concorrendo, entre outros, com Eanes e Otelo, não teve grande sucesso. Que também não conheceria na liderança do Partido da Democracia Cristã - um partido marginal ao sistema, que tivera grandes dificuldades em constituir-se, e onde a Igreja começara por apostar as fichas todas - a que se dedicaria um ano depois.
A História dos seis governos provisórios saídos do 25 de Abril, que hoje comemoramos como podemos, não é a História de dois anos alucinantes da revolução dos cravos. Mas uma não se faz sem a outra!
E viva o 25 de Abril!
A propósito das comemorações do 25 de Abril surgiram petições variadas na forma e no objectivo, uma delas dirigida, entre outros, ao Primeiro-Ministro.
O que é, afinal, uma petição?
Consagrado na Constituição da República (CRP), o Direito de Petição é o instrumento mais poderoso a que o cidadão pode deitar mão para se dirigir voluntariamente aos órgãos do Estado e obter uma resposta.
Segundo o ponto 1 do artigo 52.º da CRP, "Todos os cidadãos têm o direito de apresentar, individual ou colectivamente, aos órgãos de soberania, aos órgãos de governo próprio das regiões autónomas ou a quaisquer autoridades petições, representações, reclamações ou queixas para defesa dos seus direitos, da Constituição, das leis ou do interesse geral e, bem assim, o direito de serem informados, em prazo razoável, sobre o resultado da respectiva apreciação."
Uma petição pública, podendo ser colectiva, mais não é do que um abaixo-assinado com o objectivo de exercer pressão, sensibilizar políticos, criar uma onda de indignação, alterar ou criar propostas de lei. Portanto, tudo será admissível numa petição, que pode ser promovida em forma de papel ou através de plataforma electrónica criada exclusivamente para o efeito.
Uma petição não é, de todo, um exercício do direito de voto, não é um referendo, não vincula a matéria peticionada a uma decisão conforme o número de assinaturas.
Mas uma petição, podendo versar sobre qualquer tema e tendo qualquer entidade estatal como destinatário (com excepção dos tribunais), é um documento que obriga à leitura, análise e resposta por alguém dentro da entidade a que se destina (no caso que deste holofote, o Poder Executivo). Ou seja, uma petição tem o poder de formalizar as nossas preocupações junto do Governo Central, dos Governos Regionais, das Autarquias. Daí a sua importância no âmbito da cidadania activa, participativa.
Assim, seja o objectivo promover uma onda de indignação ou sensibilizar para determinada matéria, talvez seja importante atender a alguns cuidados na sua elaboração, sob pena de a mesma não chegar ao destinatário pretendido ou não passar a mensagem desejada.
Legisladas pela Lei 43/90, Exercício do Direito de Petição, as petições são simples de criar e não exigem conhecimentos específicos ou domínio do português; no entanto, para que possam ter força e ser efectivamente um instrumento de pressão, convém lembrar que devem ser endereçadas à entidade desejada - de nada vale dirigir-se à Assembleia da República se a matéria é competência do Governo.
Também convém ter cuidado na sua elaboração, pois a petição, assim chamada genericamente, pode ser uma
Podendo colocar-se no mesmo documento petições, representações, reclamações e queixas, resta saber se terão mais efeito juntas ou separadas.
Outra questão importante é o prazo da petição: a tramitação de cada uma exige a avaliação dos fundamentos, que podem implicar a entrega de documentos técnicos, a audições com os peticionários ou ao recurso à intervenção de entidades externas, pelo que a urgência na resposta ou a proximidade da data peticionada pode acabar por transformar uma petição viável num projecto perdido.
Há ainda que recordar que uma petição pode ter indeferimento liminar se for apresentada a coberto do anonimato e se do seu exame não for possível a identificação da pessoa ou pessoas de quem provém. Recordando que basta um cidadão para efectuar uma petição, bastará que este esteja identificado - pois é a este que a resposta, obrigatória, será endereçada. Também será alvo de indeferimento liminar se carecer de qualquer fundamento ou se a pretensão for ilegal, visar a reapreciação de decisões cujo recurso não é admissível ou se pretender a reapreciação de casos já anteriormente apreciados sem que sejam invocados ou tenham ocorrido novos elementos de apreciação. Se estas exigências não forem cumpridas, a petição não passará de ruído, de perda de tempo para todos os envolvidos.
Devo dizer que fico muito feliz quando vejo petições a circular, os cidadãos a exercerem o seu direito de manifestação usando um dos mais poderosos instrumentos, depois do voto. Gosto de ver tanta actividade.
Mas dói-me ver o objectivo e o teor de algumas petições. O pessoal que as inicia certamente não tem nada para fazer e encontrou nas petições uma boa forma de se entreter. Ou então acha que vale a pena fazer os governantes perderem tempo. Não que alguns não tenham tempo para perder, e não que alguns outros não se percam entre trabalhos que nada têm a ver com o compromisso assumido com a Nação... Mas há quem realmente se prepare e dedique à causa pública que assumiu - ao seu modo, com as suas competências, com mais ou menos sucesso, mas há. Essa história de que "os políticos não fazem nada" não está sequer em avaliação como argumento.
E, se lhes queremos dar trabalho, não acho que o melhor caminho seja facultando-lhes desculpa para que o não façam.
Nota: este tema, sendo transversal aos órgãos públicos, entra neste holofote pela actualidade do tema - muito se falou em petições nestes dias.
O Holofote 5 incide sobre o Poder Executivo. Os Governos, da República e Regionais, e as Autarquias.
Mas também incide nas relações que existem entre os cidadãos e quem nos governa, sendo fundamental analisarmos a forma como comunicamos. É esta que, antes de todas as outras matérias, iluminará o meu texto.
A pandemia que nos mantém confinados expôs várias fragilidades, uma delas o quão vulneráveis ficamos quando não nos podemos dirigir aos serviços: às repartições do Estado, às Escolas, quando até temos receio de ir ao centro de saúde. Expôs quão vulneráveis ficamos quando dependemos da comunicação social e das redes sociais para saber o que se passa lá fora no nosso país.
Num holofote anterior, falei da RTP e disse «Bem sei que tudo o que menciono acima se encontra disponível na Internet, mas a Internet é um canal distinto da radiotelevisão, e quer queiram quer não ainda há muitos info-excluídos - uns porque não têm possibilidade ou capacidade e outros porque não querem, "já não estão para isso" que as rotinas são uma opção de cada um.»
Neste momento as rotinas foram alteradas, incluindo as dos info-excluídos - que, com as rotinas alteradas e confinados, continuam a ser info-excluídos, excepção para um ou outro mais afoito respaldado num familiar.
O Poder Executivo, o Governo mas também as autarquias, tem de comunicar aos cidadãos as suas decisões, as suas orientações, e é fundamental que a Direcção-Geral de Saúde faça chegar a mensagem a todos os cidadãos. Por muito que os sítios institucionais apresentem documentos e vídeos de divulgação, continuaremos a ter uma parte da população que não os consultará. Uns porque não querem, outros porque não podem. Resta-lhes a rádio e a televisão e os jornais - mas os jornais só vêm ter a casa num plano de assinatura e quem anda na rua pouco se chegará aos quiosques nesta altura.
Resta-lhes a rádio e a televisão para se informarem, para se entreterem, para se manterem ligados ao mundo - a ligação possível, pela imagem e pelo som. A alguns, a televisão servirá, até, para manter alguma rotina de estudo.
Pergunto-me como seria se não tivéssemos uma rádio e uma televisão de serviço público, canal preferencial para o Poder Executivo comunicar com estas pessoas... um canal (na realidade, vários) sub-aproveitado e longe de cumprir cabalmente a sua missão de serviço público - mas disponível para, numa situação como a que vivemos, ter a programação reconvertida ao serviço do Ministério da Educação. Ou melhor, dos alunos. Um serviço possível.
Todos os dias tem saído legislação emanada do Governo. Porque não aproveitar a rede de canais existentes (televisão e rádio) para comunicar de forma clara os diplomas que são produzidos e aplicados? Não uma mera notícia, mas verdadeiros fóruns onde quem está em casa possa perceber as deliberações, as medidas e as suas aplicações?
Os info-excluídos estão dependentes dos serviços noticiosos dos canais nacionais, sejam rádiofónicos, televisivos ou papel-jornal. Grande parte deles, atrevo-me a adivinhar, não terá sequer canais alternativos, recorrendo à TDT, e não terá acesso a jornais diários a não ser em cafés e bibliotecas - que, nesta altura estão fechados. Muito a propósito, relembro a intervenção de Clara de Sousa no 5 para a Meia Noite, evidenciando as diferenças entre os serviços noticiosos de cada canal.
Como seria se um Governo dependesse exclusivamente de privados para comunicar com esta parte da população?
Também a propósito, foi agora divulgado que o Governo adquiriu espaço de publicidade em órgãos de comunicação social para, exactamente, poder divulgar as suas orientações ao maior número de cidadãos. Não comentarei o facto, fica apenas a indicação de que a necessidade da comunicação directa do Governo aos cidadãos existe e foi identificada.
Claro que, quando escrevo "o Governo comunicar", refiro-me a uma comunicação unilateral. Mas nós, cidadãos, também temos de comunicar com o poder executivo. A segurança social, as finanças, a saúde, a câmara municipal... e se, além de tudo isto, quisermos comunicar directamente com o Primeiro-Ministro? Sim, os info-excluídos não terão tal possibilidade. Então, talvez que o computador e a Internet sejam bens tão essenciais para a democracia como a água, a energia e o saneamento básico são para o desenvolvimento das sociedades.
na imagem, ENIAC, o primeiro computador do mundo (criado em 1946)
Nota 1. Há a possibilidade de que algumas das medidas adoptadas com este confinamento se mantenham depois de abertas as portas. E talvez este confinamento nos faça repensar a forma como comunicamos com o Estado, personificado aqui pelos agentes do Poder Executivo.
Nota 2. Como seria tal comunicação se houvesse canais regionais de televisão e se as rádios regionais fossem menos sub-aproveitadas pelos poderes executivos nacionais e locais na hora de recolherem informação e divulgarem medidas? Um dia sou capaz de voltar ao tema.
Por agora, fiquem bem e obrigada por terem voltado connosco.
Num regime semi-presidencialista, como o nosso, o poder executivo distribui-se pelo governo e pela presidência da república. Mas é o governo, com as suas emanações pelo aparelho de Estado fora, a sede central do poder executivo. Vigiado, evidentemente, pelo Parlamento, que é quem lhe dá o sustento político, na dimensão parlamentar da outra metade do regime, eventualmente maior que a simples metade.
Os cidadãos votam em eleições legislativas que determinam a sua representação na constituição da Assembleia da República. Daí sai a fórmula de governo que chega ao Presidente da República, donde depois parte um convite, pessoal e intransmissível, para a formação do governo, já na cabeça, e não só, do convidado.
Às vezes as coisas não correm tanto assim, e às vezes não correm assim tão bem. Não têm sido poucas, estas vezes. Pode dizer-se que, sempre que das eleições não saem maiorias absolutas, o país cai nessas vezes. E sabe-se que essas maiorias não são assim tão frequentes... De um só partido são mesmo bem raras, aconteceram apenas por três vezes - duas consecutivamente, nos últimos anos da década de oitenta e nos primeiros da de noventa, e outra no início da segunda metade da primeria década deste século.
As coisas começaram a não correr bem logo no arranque do regime, em 1976. Nas primeiras eleições, um ano antes, não houve problema - eram constituintes. Não seria por falta de maioria que o gato iria às filhoses. Que se entendessem a fazer a Constituição, e a verdade é que se entenderam.
Depois, quando chegaram as legislativas e o tempo de governos constituicionais é que foram elas.
O primeiro governo constitucional, saído da vitória do PS nas eleições de 1976, chefiado por Mário Soares, durou ano e meio. Em Janeiro de 1978 tomava posse o segundo, com o mesmo primeiro-ministro, mas então de braço dado com o CDS. Durou ainda menos, pouco mais de seis meses, esgotando-se aí a capacidade de entendimento do Parlamento, para dar lugar a uma sucessão de governos de inspiração presidencial (adorável, esta expressão). Foram três: o primeiro, chefiado por Nobre da Costa, um prestigiado engenheiro e executivo empresarial, nem chegou a ser aprovado pela Assembleia da República, e durou menos de três meses, no final do Verão de 1978. O Segundo, liderado por Carlos Mota Pinto, um dirigente do então PPD que andou dentro e fora, então fora, foi o de maior longevidade, e chegou aos sete meses. E o terceiro, de Lourdes Pintassilgo, também engenheira e também de fora do xadrez partidário, uma católica alinhada com o terceiro mundo (na altura discutia-se uma ideia estratégica para o país, a que chamavam vocação, entre a opção atlãntica, a europeia ou a mediterrânica, com o aprofundamento da ligação ao Norte de África e ao terceiro mundo em geral), durou cinco meses.
Porque entretanto, em Dezembro de 1979, Sá Carneiro concorreu às eleições com uma coligação - Aliança Democrática (AD) - muito abrangente que, para além do PPD e do CDS, de Freitas do Amaral e Amaro da Costa, incluía o PPM de Gonçalo Ribeiro Telles, o conceituado arquitecto paisagista dado por pai do movimento ecologista em Portugal, o único ainda vivo de todos os até agora nomeados, e os chamados Renovadores, um grupo de dissidentes do PS encabeçado por António Barreto e José Medeiros Ferreira, e alcançou a primeiria maioria parlamentar. E formou o VI governo constitucional, que não chegou a durar um ano. Desta vez não por falta de apoio parlamentar, mas pelos trágicos acontecimentos de Camarate.
Foi então chamado a formar governo o nº2 do PPD, que passara a nº1, Pinto Balsemão. Que não chegou a durar oito meses. Com o PPD consumido em guerras intestinas de disputa de poder, o demitido Balsemão não teve outro remédio que suceder a Balsemão no oitavo governo constitucional, para levar penosamente, e já numa das maiores crises económicas do país, até ao fim os últimos dois anos da legislatura.
Em 25 de Abril de 1983 o PS voltaria a ganhar as legislativas, mas sem maioria. A situação do país empurrou o regime pela primeira vez - e única, até à data - para uma solução de bloco central, na coligação dos dois maiores partidos num governo chefiado, de novo e pela última vez, por Mário Soares. Durou dois anos, de profunda crise económica e social. Durou o tempo que ainda durou a crise, e o que o PSD demorou a resolver o seus problemas de liderança. As coisas nunca são assim tão distintas.
Chegado à liderança, no tal congresso da Figueira da Foz onde, segundo a lenda, se teria deslocado para fazer a rodagem ao seu novo Citroen BX, Cavaco Silva rasga os acordos do bloco central, manda o governo abaixo e provoca eleições antecipadas, marcadas para 6 de Outubro de 1985. Que ganha, mas sem maioria. Porque o novo PRD, de inspiração eanista, emergiu para o primeiro plano do xadrez político nacional. Voltou a durar pouco, este X governo constitucional, e primeiro de Cavaco Silva. Pouco mais de ano e meio, porque o PRD, já em desagregação e com os cálculos furados, apresentou e fez aprovar, no início do Verão de 1987, a moção de censura que o derrubou. A primeira, e única, até ao momento.
As eleições de 18 de Julho varreram o PRD do mapa político do país, abriram o ciclo das maiorias absolutas de um só partido, e as portas de um largo período que ficaria conhecido por cavaquismo, uma espécie de sub-regime dentro do regime.
Para trás ficavam onze anos. E dez governos. Para a frente ficariam outros tantos em 33 anos!
Quando, 10 anos depois de entrar para o governo, Cavaco Silva decidiu entregar a sucessão a Fernando Nogueira, o PS voltou a ganhar as eleições. Com 112 mandatos, muitos mas insuficientes para uma maioria parlamentar, António Guterres tornou-se no primeiro - e único, até agora - chefe de um governo sem maioria na Assembleia da República a completar uma legislatura.
E com sucesso. Nas eleições seguintes, na viragem do milénio, reforçaria a votação. Mas não ultrapassava os 115 mandatos, ficando exactamente com metade dos deputados no parlamento. O seu novo governo não tinha por onde cair, mas também não tinha muito a que se agarrar, quando o terreno que pisasse se tornasse movediço. E tornou. Tanto que Guterres lhe chamou pântano. Que abandonou quando, pouco mais de dois anos depois e com a tragédia de Entre-os-Rios pelo meio, na sequência de uma pesada derrota eleitoral nas autárquicas, apresentou a demissão. Como já tinha feito Mário Soares, e como viria Sócrates, anos depois, a ser obrigado a fazer.
Nas eleições que se seguiram, em Março de 2002, o PSD voltaria ao poder, depois de uma vitória muito apertada sobre o PS, então de Ferro Rodrigues, em tempos em que valia tudo à volta do escândalo Casa Pia. Agora de braço dado CDS, já de Paulo Portas, Durão Barroso foi indigitado para chefe do XV governo constitucional. Que durou pouco mais de dois anos. Durão Barroso não resistiu ao canto da sereia de Bruxelas e partiu, entregando as chaves do XVI governo a Santana Lopes.
Não resistiu mais de seis meses às famosas trapalhadas. Jorge Sampaio usou pela primeira vez a bomba atómica do regime para pôr fim àquilo a que o país percebera que teria de pôr fim. E dissolveu a Assembleia da República, ainda os portugueses limpavam as lágrimas da final euro 2004.
Das eleições seguintes, em Fevereiro de 2005, saiu a primeira maioria absoluta do PS. Provavelmente a última maioria absoluta de um só partido no regime. José Sócrates, esse, governou por quatro anos. Em 2009 já não repetiu a maioria, e foi o que se viu. Obrigado pelo ministro das finanças, Teixeira dos Santos, a demitir-se, depois de PEC´s para trás e para a frente. E a entregar o país, de rastos, à troika...
À troika e a Passos Coelho. Que, com Cavaco há muito em Belém, e de novo de braço dado com Paulo Portas, atingiria finalmente o velho sonho de Sá Carneiro: um presidente, uma maioria, um governo!
Um governo que, sentado numa maioria, voltaria a concluir a legislatura. Difícil e penosa, especialmente para a imensa maioria dos portugueses.
Quatro anos depois essa maioria voltaria a eleições, em coligação pré-eleitoral, como em 1979. E toda agente sabe o que aconteceu: o Presidente da República convidou o líder da força política mais votada para formar governo, e Passos Coelho foi empossado como chefe do XX governo constitucional, que a Assembleia da República chumbaria. Foi a segunda vez que inviabilizou um governo.
E a primeira que impôs uma solução governativa a um Presidente da República. Que, manifestamente contrariado, acabou por aceitar António Costa como chefe do primeiro governo formado por uma força política que não tinha sido a mais votada nas eleições, apoiado numa maioria parlamentar de esquerda.
O resto é história recente. E é o regresso, na legistura em curso, a um governo minoritário. Daqueles que em regra não conseguem concluir o mandato de quatro anos.
Numa história de tantos governos, cada um tem a sua. Como pertence!
PS: Mais de um ano depois o Rasurando está de volta. E estou de volta com ele!
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